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A ENTREVISTA DE APRESENTAÇÃO DE PACIENTES: O quê? Por quê? Para quem?

Breve histórico

A apresentação de pacientes (entrevista com o doente) é uma prática de ensino e de estudo clínico, contemporânea ao nascimento da Psiquiatria. Uma entrevista com o doente, conduzida pelo psiquiatra perante um grupo de profissionais e alunos. Uma prática em que se busca, a partir dos fenômenos relatados pelo paciente, apreender os mecanismos subjetivos em jogo, discutir o diagnóstico que eles suscitam e a melhor alternativa de tratamento, a partir das categorias nosológicas existentes.

Jacques Lacan, psiquiatra no Hospital Saint-Anne em Paris, manteve essa prática, modificando-a. Transformou a apresentação de pacientes em um encontro com um analista, uma experiência que permitiria a apreensão do sujeito do inconsciente e teria as funções de ensino, de transmissão do instrumental psicanalítico, de diagnóstico e de orientação terapêutica. Lacan manteve essa prática ao longo de seu ensino por aproximadamente 30 anos.

 

Em dezembro de 2000 houve em Belo Horizonte uma Grande Conversação – “Repensar a Escola”, sob a coordenação de Jaques-Alain Miller, com muitas consequências para os destinos da EBP. Para este contexto, é importante ressaltar a proposta da divisão do IPP-SP em três Seções: Psicanálise Aplicada, Recenseamento do Campo Freudiano e Psicanálise Pura, tendo sido definido que Sandra Grostein ficaria com a coordenação desta última. Neste momento, iniciou-se a parceria com Andrés Santos Jr, então diretor clínico do Hospital Nossa Senhora de Fátima, para desenvolvermos naquele hospital a atividade de apresentação de pacientes desde a perspectiva psicanalítica, visando a interlocução entre a psicanálise e a psiquiatria.

Os desdobramentos das três Seções do IPP-SP para os três Institutos de São Paulo seguiram, a princípio, a lógica das três Seções. A CLIPP é herdeira da Seção de Psicanálise Pura, trazendo no âmago de sua fundação a Seção Clínica e a prática da Apresentação de Pacientes.

Nesse sentido, deu-se continuidade à parceria com Andrés Santos Jr e o Hospital Nossa Senhora de Fátima, até o momento em que ele deixou o cargo em 2004, mas nos convidou para continuarmos o trabalho em outro espaço. Desde então, esta atividade é realizada no Departamento de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo.


As entrevistas

As entrevistas atualmente são realizadas uma vez por mês, conduzidas por Sandra Grostein. Os pacientes são escolhidos pelos psiquiatras e a discussão fica a cargo de Andrés Santos Jr. Na plateia, encontram-se tantos os participantes da Seção Clínica da CLIPP quanto os profissionais de saúde ligados ao hospital.
Desde o início de minha formação em psicanálise de orientação lacaniana acompanho o esforço de transmissão apoiado na apresentação de pacientes. Tive a oportunidade de assistir às apresentações feitas por Jorge Forbes, ainda nos anos 80, na Casa de Saúde Tremembé, sob a coordenação do Prof. Dr. Carol Sonnenreich. Anos depois, assisti, no Hospital do Mandaqui, às apresentações de Marcio Peter de Souza Leite e Jorge Forbes principalmente, sob coordenação de Ariel Bogochvol. Posteriormente, tive nova experiência de apresentação de pacientes no CAPES Perdizes, onde fiz pela primeira vez uma entrevista, pois neste contexto se alternavam nesta função vários colegas do IPP-SP, sob a coordenação de Rômulo Ferreira da Silva. Além disso, tive a oportunidade de assistir em Paris, no serviço de Guy Briole, no Hopital Val-de- Grâce às apresentações feitas por Jaques-Alain Miller.
Desde 2002 me responsabilizo por estas entrevistas cujo valor de transmissão para mim é de grande importância. (Sandra Grostein)

Núcleo de Pesquisa

O Núcleo de pesquisa em Apresentação de Pacientes está em atividade desde abril de 2011, sob a coordenação de Perpétua Gonçalves Medrado e Eliane Costa Dias, com a proposta de trabalhar textos que permitam circunscrever as bases históricas e teóricas desse dispositivo, como exercido por Lacan, articulados à discussão da transcrição de algumas entrevistas de AP.
A produção do núcleo tem girado em torno de interrogar essa prática – a entrevista de AP – a partir de uma pergunta fundamental: qual o interesse da psicanálise na proposta de uma Apresentação de Pacientes?
Tentamos abordar essa questão a partir de alguns eixos fundamentais:

  1. O que é a entrevista de AP na perspectiva da psicanálise de orientação lacaniana?
  2. Para que e a quem serve a entrevista de AP em psicanálise?
  3. A interlocução com a Psiquiatria e o discurso da ciência.

O dispositivo

Por que consideramos a Apresentação de Pacientes como um dispositivo clínico? Haveria ainda um trabalho a ser evidenciado pelos participantes da CLIPP nesta experiência. Os psicanalistas ali engajados, além de testemunhar uma prática clínica (de caráter eminentemente psiquiátrico) – vinculada a um serviço de saúde mental público – são orientados também por uma escuta notoriamente marcada pelo ensino de Jacques Lacan.

Consideramos a entrevista de AP como um dispositivo clínico, na medida em que se caracteriza como um dispositivo de fala e um encontro com o analista. Partindo-se do pressuposto de que não há um saber a priori, o foco está na singularidade da fala do sujeito – é ele que apresentará seu problema, sua história, seus sintomas e sua questão.
Guiados essencialmente pelo discurso – e não necessariamente por uma história ou anamnese – dali podemos extrair algumas consequências da relação do sujeito com a linguagem e com o inconsciente.
Destacamos que a prática da CLIPP em torno deste dispositivo tem como princípio orientador da experiência a preocupação com a indicação e o encaminhamento na direção de um tratamento analítico. Afinal, no que a psicanálise pode ajudar aqueles ditos pacientes?

Os efeitos

De maio de 2001 a outubro de 2013 foram realizadas 106 entrevistas de AP (21 no hospital Nossa Senhora de Fátima e 85 no HSPESP).
Esse tempo de atividade indica, como aponta Miller, que nas entrevistas de AP a grande psicose é rara.
A função da entrevista de AP vai muito além da demonstração e da precisão diagnóstica. Na medida em que há um encontro com o analista, o dispositivo de fala colocado em jogo tem efeitos para todos os envolvidos na cena: o paciente, o analista, o público que assiste, a instituição.

Há efeito clínico quando o entrevistador consegue efetivamente tocar o sujeito no doente.
Considerando que os sintomas dizem das estratégias, das invenções absolutamente singulares de cada sujeito para lidar com o real, a entrevista de AP, como intervenção, pode ter efeitos terapêuticos para o paciente: efeito sujeito, efeito de testemunho, efeito de surpresa, efeito de transferência.

Os significantes isolados na AP podem ser decisivos para o estabelecimento da transferência com a psicanálise e para a procura e a direção de um tratamento analítico posterior.

O saber singular sobre um caso pode ter efeitos, ainda, sobre os praticantes da psicanálise que tomam lugar na assistência, assim como sobre a equipe e a própria instituição, na medida em que “a presença da psicanálise subverte a clínica universal”. Nesse ponto, os efeitos de transmissão e de ensino se enodam aos efeitos clínicos.

Segundo Marcelo Veras, a entrevista de AP envolve a tríade entrevistador/entrevistado/plateia. O desconforto da falta de um roteiro abre espaço para a “surpresa”. Seguindo a lógica do encontro com um analista, no dispositivo de AP essa tríade encontra-se com um quarto elemento – o Inconsciente. O encontro segue, portanto, o cálculo da contingência, que leva à surpresa.

Os efeitos de formação na AP são, portanto, contingenciais. Uma contingência só se torna formação devido à implicação de cada um na assistência e a abertura aos efeitos da lógica do inconsciente.

Eliane Costa Dias
Perpétua Medrado

Texto publicado in: Territórios Lacanianos nº 07 – Diretoria na Rede – Boletim Eletrônico da Escola Brasileira de Psicanálise, dezembro/2013.

VERAS, Marcelo – A loucura entre nós: uma experiência lacaniana no país da saúde mental. Salvador, Aldeia Bahia Brasil, 2010, p. 226.

Idem, p. 222.