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Atualidades Psicanalíticas #003

É fácil ver a segregação em outras culturas e não na sua própria.

por Jorge Assef

 

“Os Estados Unidos estão pegando fogo”, essa foi uma das manchetes das notícias nesses dias, em diferentes lugares do mundo, para descrever a magnitude e o significado histórico da explosão social que ocorreu após o assassinato de George Floyd na cidade de Minneapolis. O afro-americano foi sufocado por um policial que comprimiu seu pescoço com o joelho por mais de oito minutos.

O trágico acontecimento trouxe para o debate o racismo que ainda existe na América do Norte no século XXI e que é reproduzido em outras sociedades em todo o mundo.

– Como o racismo pode ser definido do ponto de vista da psicanálise lacaniana?

– Jacques Lacan menciona o racismo como uma das formas de segregação que assume muitas faces e características. Pode ser a cor da pele, religião, orientação sexual, classe social. Até certo ponto, Lacan era um visionário porque, em um momento em que a palavra ‘globalização’ não existia, ele afirmou que “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais rígida dos processos de segregação” (p. 263)1. Ele já anunciava uma perspectiva de futuro que, longe de se tornar mais tolerante, mais pacifista, mais aberto à diferença, será um tempo em que os processos de segregação se tornarão mais intensos.

E então você tem, por exemplo, que no mesmo país há um presidente como Barack Obama – cujo bisavô era escravo – e 8 anos depois, você tem um presidente como Donald Trump. Nesse sentido, também há fanatismos religiosos; e não apenas a radicalização islâmica, mas também o que vem ocorrendo há anos no Brasil e o que vemos com o presidente Bolsonaro.

Lacan ressalta que o racismo não requer uma estrutura ideológica complexa, mas um “mais-de-gozar”, um traço de gozo. Por exemplo: somos todos tolerantes com tudo e ninguém é racista. Eu vejo um chinês andando na rua e não sou racista. Eu vejo esse chinês em um café e não sou racista. Agora, essa família chinesa se muda para o meu prédio e começa a cozinhar com todos os temperos que o povo chinês gosta de comer. Começo a sentir o cheiro dessas especiarias e esse chinês agora se torna insuportável para mim. Em outras palavras, qualquer um pode ser muito tolerante com as diferenças até que essa diferença do outro comece a afrontar meu próprio modo de vida.

Na tese de Lacan sobre a paranoia, podemos encontrar uma explicação para as sementes de qualquer tipo de segregação. Todos temos um ponto que não sabemos sobre nós mesmos e, nesse ponto, somos todos estrangeiros. Então, quando algo do meu próprio gozo chega até mim vindo do outro, é quando se põe em ação essa rejeição mais fundamental. Então, finalmente, o que é rejeitado e segregado é o gozo do outro, mas mais precisamente é o que me remete ao meu próprio modo de gozo desconhecido.

Portanto, se a humanidade precisa de tantos requisitos e de muitos sistemas de prevenção para evitar crimes de segregação e discriminação, é porque não dá para dizer que os seres humanos são tão tolerantes assim às diferenças. Muito pelo contrário. Parece que há que se trabalhar numa certa evolução humana.

– Até que ponto você acha que os eventos atuais se relacionam à política de Donald Trump? Que outros elementos podem ser discernidos?

– Eu acho que o que está acontecendo nos EUA é algo muito peculiar. É necessário enfatizar que o fato de que essa semente exista, essa rejeição à diferença do modo de gozar do outro como uma disposição da subjetividade, não significa criar um sistema com isso.

Quero dizer … estou me referindo a um sistema utilitário de desenvolvimento sócio-político que transforma essa semente em um mecanismo de opressão sistemático usado por um dos grupos em benefício de outro grupo humano, como a escravização de afro-americanos ou o poder de homens sobre mulheres. De fato, um dos tópicos em discussão no feminismo é sobre os empregos não remunerados das mulheres, considerados partes de um sistema de benefícios financeiros. Portanto, o fato de um grupo ter aproveitado todas essas disposições subjetivas para estabelecer um sistema de opressão é uma coisa completamente diferente.

Os Estados Unidos, devido às diferentes ondas de imigração que fazem parte de sua história, tiveram que administrar e sustentar uma coexistência mais ou menos pacífica de grupos sociais, em muito pouco tempo, especialmente nas grandes cidades. Cada comunidade vive dentro de sua própria cultura e, enquanto isso acontece dentro de suas fronteiras, parece que as coisas funcionam bem e até parecem divertidas. No entanto, quando existem cruzamentos, os problemas surgem.

Agora, para mim, esse momento não é coincidência. Porque o policial branco comete crimes contra negros o tempo todo. Mas, por que esse crime é tão especial? Porque há o contexto do coronavírus, pelo qual 70% dos mortos pelo vírus são afro-americanos ou latinos. Além disso, as taxas de desemprego estão extremamente altas, afetando principalmente as comunidades mais vulneráveis. Então, no contexto da pandemia, que está desmascarando as desigualdades sociais, esse foi o fator que desencadeou a bomba.

– Na Argentina, a notícia teve repercussão, mas como você explica que se veja o horror de lá, mas não o daqui?

– As formas de segregação são praticamente naturalizadas, me parece, em cada um de nós. Porque quando você visita os EUA e vai a um restaurante e vê que a pessoa que limpa a mesa, ou traz sua comida ou o leva até a mesa é de qualquer país da América Latina, você acha isso inacreditável! Mas é como se você não pudesse ver o mesmo efeito com grupos humanos típicos de certas comunidades e que estão confinados a certos subempregos em seu próprio país. Quero dizer, é fácil ver a segregação em outras culturas e não na sua própria.

Nascemos em uma sociedade estruturada por sistemas de segregação. Atualmente, havia um grafite que dizia: “O racismo deles é o nosso classismo”.

Mesmo na cidade de Córdoba (a segunda maior cidade argentina) com o chamado “código de convívio”, o que está oculto é que existem pessoas que simplesmente não podem entrar na cidade. Nos saques durante a greve da polícia em 2013, essas pessoas foram precisamente para um bairro onde alguns setores nunca entram. Então, como as pessoas do Queens ou do Bronx não saquearão a Quinta Avenida? Viver e crescer na ostentação da desigualdade tem um preço. Às vezes, esse preço é pago de forma violenta.

– Qual pode ser a contribuição da psicanálise para o convívio ou algum outro conceito que permita articular um laço para avançar?

– Eu acho que a contribuição da psicanálise poderia ser a de oferecer uma possibilidade para que cada indivíduo possa entender porque rejeita o que rejeita. Quando alguém entende algo sobre as coisas que lhe causam medo ou rejeição, o outro se torna muito menos perigoso. Quando Lacan define o desejo do analista, ele diz que o que incentiva o trabalho deles é obter a diferença absoluta em cada sujeito. É o oposto do processo de segregação. Significa deixar para trás a identidade de massa, que pode ser um abrigo, mas que também pode ser nossa pior prisão.

 

Traduzido por José Wilson R. Braga Jr.

1 Lacan, J. (1967a/2003). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. (pp. 248-264). Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Primeiro publicado em espanhol em 04/06/2020, no jornal Comercio y Justicia.
Texto publicado na Lacanian Review Online em 20/06/2020 no link abaixo
http://www.thelacanianreviews.com/its-easy-to-see-segregation-in-other-cultures-and-not-in-your-own/