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Atualidades Psicanalíticas #014

Evaporação

Por Gustavo Dessal

Todos os anos, centenas de milhares de pessoas desaparecem sem deixar vestígios. Nas delegacias de polícia de todo o mundo, há listas de pessoas que foram dadas como desaparecidas e que nunca serão encontradas. As causas são muito variadas. Alguns morreram supostamente por suicídio ou assassinato, mas seus corpos nunca foram encontrados. Outros são vítimas de desaparecimento à força: sequestro, perseguição política ou retaliação.

Mas há outra versão, as pessoas evaporadas. Pessoas que um belo dia, e de forma totalmente inesperada, optam por sair no meio da noite, abandonando tudo. Eles deixam para trás suas famílias, seus amigos, seu trabalho, e o fazem sem deixar um único bilhete de despedida. Nos últimos anos, novas empresas surgiram, dedicadas a ajudar aqueles que tomam a decisão de desaparecer e criar uma nova vida. Antigamente, era relativamente fácil desaparecer do mundo. Hoje, devido à invenção da internet, dos sistemas de vídeo-vigilância e de geolocalização, conseguir isso é muito mais complicado. Não é fácil apagar os rastros que o indivíduo, mesmo o mais insignificante, deixa para trás. As vidas, de todos nós, estão registradas para sempre, e desaparecer dessa memória implacável é praticamente impossível, exceto para aqueles com uma grande fortuna, como no caso de Brad Pitt, que gastou vários milhões de dólares para garantir que uma série de fotografias impróprias de Angelina Jolie fosse apagada do universo digital.

Em outros tempos, havia guias que, em troca de uma boa quantia de dinheiro, transportavam as pessoas por passagens ocultas de fronteira. Hoje, você pode ir a uma empresa que organiza uma mudança noturna, como é chamada, uma espécie de morte e renascimento programados para quem busca uma segunda chance. “Quarta-feira às cinco horas / À medida que o dia começa / Fechando silenciosamente a porta do quarto / Deixando o bilhete que ela esperava que dissesse mais …Paul McCartney cantou nos anos 60, quando os jovens escapavam da casa dos pais. Eles pelo menos deixavam um bilhete e, via de regra, voltavam logo, quando as coisas ficavam um pouco complicadas.

Hoje, o evaporado não deixa pistas. Para garantir que seja esse o caso, eles prometem uma grande quantia de dinheiro, porque contornar a vigilância e o monitoramento é quase impossível sem a ajuda de especialistas em informática. Frank Ahearn era um investigador particular que acabou se tornando um dos maiores especialistas do mundo na busca de pessoas, a ponto de os principais serviços secretos solicitarem sua colaboração. Quando o escândalo Bill Clinton e Monica Lewinsky veio à tona, a estagiária desapareceu. O FBI mobilizou todos os seus recursos para encontrá-la, mas foi inútil. Finalmente, eles contrataram Frank, que a encontrou em menos de vinte e quatro horas. O interessante é que, alguns anos depois, Ahearn decidiu reverter a direção de seu negócio e se tornou o homem que afirma ser o único no mundo capaz de fazer alguém desaparecer para sempre, sem possibilidade alguma de fracasso. O mais complexo não é fornecer um novo destino, mas retirar a vida do mundo da internet. Como é impossível deletar um nome de lá, já que a maioria das páginas é de propriedade privada e não pode ser acessada para modificar seu conteúdo, Ahearn inventou a “distração virtual”, que envolve a criação automática de milhares de locais – perfis de Facebook, Twitter, Instagram – que contêm diferentes informações sobre a mesma pessoa, assim como centenas de fotografias variadas, de forma que, quando alguém pesquisa essa pessoa na rede, encontra uma quantidade impressionante de dados que são muito difíceis de classificar e filtrar.

Seu livro How to Disappear vendeu milhões de cópias. Aparentemente, assim como milhões de pessoas sonham em ser visíveis, outras são capazes de pagar uma fortuna para desaparecer por completo. Frank afirma ser coerente com um princípio ético fundamental: ele não aceita pedidos de pessoas que tenham cometido crimes. Seus clientes são aqueles perseguidos por dívidas de jogo, pela máfia, por traficantes, por agiotas, mas também podem ser românticos que deixam o casamento para se encontrar em algum lugar do mundo com um amor secreto.

Mas há outros que não pertencem a nenhum dos casos mencionados. São os desesperados, aqueles que estão cansados da vida ou que sonham em reencarnar no ideal que os incomoda desde sempre.

Conheço um menino que olhava a paisagem do campo pela janela do carro, imaginando que entre as montanhas haveria uma passagem escondida por onde ele poderia deslizar e aparecer em uma outra vida.

 

Traduzido por José Wilson Ramos Braga Jr.
 Texto republicado com permissão do autor. Texto publicado na Lacanian Review Online em 24/10/2020 no link abaixo https://www.thelacanianreviews.com/evaporation/