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Atualidades Psicanalíticas #31

O significante, a letra e o corpo: a mudança de perspectiva na histeria

Por Avi Rybnicki

O Outro é necessário para a construção de um corpo, pois um corpo não é algo que possamos tomar como garantido. Os histéricos de Freud ‘têm um corpo’, que transmite uma mensagem de um para o outro, transportam também o sintoma do outro; podemos dizer com Miller e Laurent que, em tais casos, um sintoma é de segundo grau, baseado na identificação. Nisso há claramente um aspecto sócio-político de cada Unbehagen in der Kultur, mal-estar de cada cultura.

Assumindo a tarefa de expressar algo do mal-estar do outro, a histérica transmite os conflitos indizíveis de sua cultura, pois no inconsciente freudiano o indizível do sujeito está relacionado àquilo que uma cultura reprime. Então, o que observamos agora, considerando que muitas vezes se afirma que o histérico não existe mais porque tudo é “gratuito e permitido”? Poderíamos considerar que a histeria hoje ainda cumpre sua tarefa histórica de expressar o desconforto na cultura.

A histérica de Freud revela a insuficiência do mestre – seus furos, fracassos e rachaduras. Esta forma de sintoma histérico mostra que o “rei está nu”. Mas o problema é que, nesta versão, a histérica está presa na identificação, o que significa que ela não deixa de ter saudades do “verdadeiro rei”, aquele a quem nada falta. Assim, ela chega constantemente, cada vez mais, com cada objeto, ao fracasso no outro. Nesse esforço de Sísifo, seu corpo está aprisionado, incapaz de liberar a libido para amar de verdade.

Como interromper essa tragédia metonímica, em vez de apenas amenizá-la? É uma questão: como ir além dessa rocha de castração do Outro? Esta é a pergunta de Freud em Análise Terminável e Interminável [1] . Ele tem dúvidas sobre a possibilidade de ir além e deixa o desafio para a próxima geração.

Lacan desenvolveu o conceito de sintoma freudiano e a questão do corpo, que se relacionam com outra questão de Freud: “Was will das Weib?” (O que quer a mulher?). Em seu último ensino, Lacan inventou o sinthoma, “o corpo falante”, “não há relação sexual” e “a mulher não existe”. Esses conceitos visam o além da barreira da identificação no tratamento psicanalítico, bem como a formação do analista. Eles também nos dão uma nova perspectiva sobre a histérica e o tratamento porque visam algo mais primário no sintoma, uma dimensão dele que não se troca com o outro e, portanto, não é atribuído como um efeito do sintoma do outro. Mais do que uma mensagem para o outro, é um outro corpo, feito diretamente pelo “significante como tal”, a letra, um acontecimento de corpo, e não um equívoco de sentido transportado pelo significante. Assim podemos dizer que está “livre” do outro.

É claro que ele precisa ser envelopado pelo falar a um outro que escuta e está atento ao inconsciente freudiano, estruturado como uma linguagem, para ir além dele e tocar o deserto do real. Isso pode ser uma mudança para a pessoa porque pode aparecer algo do sujeito que, por si só, não tem sentido e, com isso, a possibilidade de que algo novo aconteça. Isso é crucial em nossa época, onde a crença no Outro declinou radicalmente – aliás, dizemos que o Outro não existe – e como resultado da falência da identificação, cada vez mais sujeitos se desesperam, sem qualquer orientação. A psiquiatria dá todos os tipos de nomes a esses fenômenos, colocando-os “dentro” do indivíduo ou do cérebro, muitas vezes obscurecendo a dimensão sociopolítica dialética.

O último ensino de Lacan nos permite formular o lugar da histérica hoje. Ela expressa exatamente essa confusão, bem como os problemas de desejo, da pulsão e a dificuldade de se voltar para o outro para amar. Na verdade, talvez o que estejamos vendo agora seja um renascimento da histérica.

 

Tradução: José Wilson Ramos Braga Jr.
Revisão: Leny M. Mrech

[1] Freud, S. “Análise terminável e interminável” (1937). Obras Completas. Vol. 19. Companhia das letras: São Paulo, 2018, p. 274–326.
Texto republicado com permissão do autor. Publicado em inglês na Lacanian Review Online em 01/05/2021 no endereço eletrônico
https://www.thelacanianreviews.com/the-signifier-the-letter-and-the-body-changing-perspective-in-hysteria/