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No ultimíssimo boletim Traços, Eliane Dias, associada fundadora da CLIPP, apresenta uma articulação entre a solidão e a psicanálise na época do falasser.

A solidão e as soluções do falasser

Por Por Eliane Costa Dias
(EBP/AMP)


Imagem: Edward Hopper. muddycolors.blogspot.com

 “Quem fala só tem a ver com a solidão” (Lacan, 1972-73)[1].

“A solidão é uma ilusão” (Brousse, 2019)[2].

Como conciliar essas duas afirmações, aparentemente contraditórias? Como falar em solidão do sujeito quando não há sujeito sem o Outro?

No trabalho clínico e epistêmico preparatório às IX Jornadas da EBP-SP nos deparamos com diversos sintagmas: solidão-queixa que se ouve na clínica, solidão-sintoma nas diferentes estruturas clínicas, solidão-posição no laço social, solidão-efeito da época, solidão-ato, solidão-desejo do analista, solidão-Escola. Como afirma Miquel Bassols, “há diversas solidões, diversas maneiras de estar só”[3].

Penso que a via de articulação entre essas diferentes perspectivas passa por deslocarmos o eixo de abordagem do par sujeito-Outro, pedra angular do primeiro ensino de Lacan, para o par falasser-gozo, introduzido em seu último ensino.

O último Lacan nos direciona a uma nova teoria da constituição subjetiva, não mais do sujeito, mas do falasser. O encontro do vivo com a linguagem é causa de um acontecimento de gozo, de uma afetação que marca a carne. A intrusão do significante faz furo e marca uma inscrição primeira – Bejahung -, mas impõe, ao mesmo tempo, uma expulsão primordial do que é insuportável – Ausstosung. O que é expulso do Eu, esse fora do corpo primordial, vai constituir o real enquanto domínio do que subsiste fora da simbolização, do que ex-siste e insiste. Desta forma, todo falasser se constitui a partir desse troumatisme e se confronta com o desafio de encontrar solução para o vazio que lhe é constituinte e para essa dimensão opaca e inominável do ser – o gozo.

Como cada falasser se vira com essa segregação estrutural?

O trabalho realizado durante o IX ENAPOL[4] mostrou que as paixões e os afetos que tomam o ser falante são efeitos, respostas a esse furo estrutural e estruturante que Miller nos propõe como foraclusão generalizada[5]. Dessa perspectiva, verificamos que a solidão é um afeto inerente ao falasser e podemos pensá-la a partir dos três registros – RSI.

No campo do Simbólico, evidencia-se que só pode haver experiência de solidão na relação com o Outro da palavra e da linguagem. A solidão como afeto resultante da experiência de separação e de castração no processo de constituição subjetiva, da experiência de presença/ausência do objeto. Na relação com o Outro, a solidão configura uma modalidade de resposta frente ao enigma do desejo do Outro e por essa via, podemos pensar em uma clínica diferencial da solidão[6]:

  • No campo da neurose, encontramos a solidão como afeto decorrente da falta-a-ser, a solidão alojada na fantasia: parceria imaginária com o falo, na fantasia obsessiva; identificação ao objeto suposto completar o desejo do Outro, na fantasia histérica. A experiência de solidão do neurótico diz da expectativa de encontrar no Outro uma completude que possa recobrir sua falta-a-ser.
  • No campo da psicose, por outro lado, a solidão apontaria à posição do sujeito em sua inexorável dor de existir, atravessado pela insistência silenciosa da pulsão.

No plano do Imaginário, a solidão remete à ausência/presença do outro, à suposição de que poderia haver uma presença ali onde algo está ausente. Solidão como afeto que emerge e move as relações de identificação e de rivalidade próprias do imaginário e nos permite pensar a solidão na subjetividade contemporânea. Em tempos de declínio do simbólico, de elevação do objeto ao zênite social[7], na impossibilidade de identificação pelo amor ao Pai, prevalecem as identificações pelo modo de gozo. As comunidades de gozo oferecem referências e alguma nomeação (somos gays, anoréxicos, evangélicos…), mas não asseguram solução para o desamparo estrutural, posto que não se encontra lugar para o singular do gozo em grupos homogeneizantes e que resultam em movimentos segregativos. Como alerta Philippe La Sagna: “O eu isolado contemporâneo, que Lacan denunciou há mais de cinquenta anos como redução do homem ao indivíduo, hoje se constitui um eu de contorno fluido e plasticidade líquida, tão móvel e frágil quanto o mais de gozar que ele reflete”[8].

A insuficiência do Simbólico e do Imaginário para dar conta da solidão nos abre caminho para sua vertente real.

Na passagem do Seminário 20 de que extraímos a citação acima, Lacan nos diz que o “Eu, não é um ser, é um suposto a quem fala”[9]. Afirma que a solidão diz respeito ao que não se pode escrever – o real da não relação sexual – e a define como “ruptura do saber”. Ou seja, os momentos de ruptura que levam à solidão são momentos em que se rompe o saber do mestre e com ele, a ilusão de que esse saber poderia assegurar um sentido ao inominável do ser. A solidão implica, portanto, o que é impossível de nomear e de partilhar.

Na dimensão do real, a solidão remete ao Um do gozo, na medida que é da essência do gozo seu caráter autístico e solitário. Mesmo no encontro com o Outro do sexo, o lugar do gozo é o corpo próprio, sempre solitário, por qualquer que seja o meio de acesso. Campo do gozo como Um que não faz dois e que se impõe como coordenada central do último ensino de Lacan.

Não há relação sexual. Há gozo. Há Um. Há solidão[10].

Em sua vertente real, portanto, a solidão é uma condição subjetiva inexorável e está atrelada à angústia, outro afeto igualmente estrutural e estruturante.

Qual o fazer da psicanálise com a solidão?

Frente às paixões do ser e às intempéries da época, cabe à psicanálise persistir numa política do amor ao sintoma. O envelope formal do sintoma nos diz da armadura de significantes e de vestimentas imaginárias em que o sujeito se encontra enredado, mas seu núcleo opaco aponta ao pulsional, ao real do gozo que não cessa de percorrer a carne e de não se escrever. Como bem descreve Philippe La Sagna: “O sintoma é o traço escrito de nossa solidão, de nosso não saber fazer com o que importa: a mulher, a verdade, o gozo e o laço social que tempera os impasses do gozo”[11].

Cabe ao psicanalista sustentar uma clínica da singularidade, que possa levar um sujeito a uma relação com o sintoma que lhe permita saber-fazer-aí como o desejo e com o gozo, que lhe permita suportar uma experiência de solidão capaz de fazer laço[12].


[1] Lacan, J. Seminário 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 128.
[2] Brousse, M. H. Entrevista “Solidão”. Disponível no Boletim Traços #01: https://ebp.org.br/sp/jornadas/ix-jornadas/boletim-tracos-ix-jornadas/boletim-tracos-01/
[3] Bassols, M. Soledades y estructuras clínicas. Freudiana, nº 12, 1994.
[4] IX Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana: Ódio, Cólera, Indignação. Realizado em São Paulo, de 13 a 15 de setembro de 2019.
[5] Miller, J-A. Foraclusão generalizada. In: Batista, M. C.; Laia, S. (org.) Todo mundo delira. Belo Horizonte: Scriptum, 2010.
[6] Bassols, M. Ibid.
[7] Laurent, É. A sociedade do sintoma. A psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007, p. 163.
[8] La Sagna, P. Do isolamento à solidão, pela via da ironia. Curinga, nº 44, 2017, p. 74.
[9] Lacan, J. Ibid., p. 128.
[10] Darrigo, L. Uns traços – Solidão, a impossibilidade de fazer dois. Disponível no Boletim Traços #02: https://ebp.org.br/sp/uns-tracos-solidao-a-impossibilidade-de-fazer-dois/
[11] La Sagna, P. Ibid., p. 77.