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O real ancorado

Carmen Silvia Cervelatti

            “Que o real esteja ancorado!” Esta afirmação de Lacan está no Seminário 19, …ou pior. Para chegarmos até este estado ou condição do real, se assim posso me referir ao real, no meu entender, é preciso retomar o ponto central que Lacan está articulando no capítulo XIII: Na base da diferença dos sexos. No que diz respeito às relações sexuais, ele propôs a função φx como um modelo que permitiria fundamentar algo diferente do semblante, pois o gozo sexual não é semblante do sexual. O semblante permite o laço social e um discurso que não fosse semblante acabaria mal, não seria laço social . Fora do semblante estaríamos, então, num campo em que o Outro não existe, não que ele não possa vir a consistir de alguma maneira – enquanto parceria é uma das possibilidades, já que é uma maneira de inventar artifícios que orientam, que faz suplência à não relação sexual.

Sabemos que o gozo sexual é uma diferenciação do gozo constitutivo do ser falante, este muito mais dado ao real, primário na constituição subjetiva. É nesta refração que o gozo sexual fracassa sempre na busca da complementaridade, do Um com o parceiro sexual. Lacan, inclusive, chegou a compará-lo ao jogo do passa-anel: é este objeto que corre, mas que ninguém consegue enunciá-lo. Isso levou Lacan a afirmar, neste Seminário, que “é na própria prática da relação sexual que se afirma o vínculo do impossível e do real que promovemos, nós, como seres falantes, em toda parte. O real não tem outra atestação.” . Ou seja, se trata de uma impossibilidade que demonstra o real formulado como “não há relação sexual”. Enfatizo o termo fórmula, é este o ponto que quero chegar, mais à frente.

Para o falasser, a relação sexual é uma ilusão. Diferimos dos animais, seres instintivos, que sabem fazer frente ao parceiro dado biologicamente. O instinto é um saber já inscrito no organismo, fazendo da cópula uma invariável porque há um padrão determinado pela espécie.

No falasser não há este saber a priori, não se sabe “naturalmente” o que complementa os sexos, qual a devida proporção entre os sexos. Como seres de desejo, desejo que é subversão da necessidade, somos sujeitos traumatizados pela intrusão da linguagem no organismo; porém, nem o simbólico nem mesmo o imaginário, recobrem totalmente o falasser; uma parte fica exposta, fora da possibilidade de ganhar sentido, fora do simbólico, instalando no cerne do sujeito um fracasso, algo que rateia, por mais explicações, fantasias e ficções que se possa erigir para tentar remediá-lo, para encontrar a justa medida que responderia à eterna pergunta: o que o Outro quer de mim? Quê posso ser para o Outro?

Sendo esta a época em que o Outro não existe, poderíamos pensar que o recalque não faz mais sucesso, como o Édipo, porque os ideais já não servem mais de sustentáculo para a identificação. Então, como entender este comentário de Lacan, em 1973 em Televisão?

“Mesmo que as recordações da repressão familiar não fossem verdadeiras, seria preciso inventá-las, e não se deixa de fazê-lo. O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura.” Ele continua: “O impasse sexual secreta as ficções que racionalizam o impossível de onde ele provém. Não digo que sejam imaginadas, leio aí, como Freud, o convite ao real que responde por isso.” 

Lacan lê, nesse mesmo texto, que Freud em seu “Mal-estar” evoca uma “maldição sobre o sexo”, atestada pelo discurso analítico, e que de maneira alguma seria possível suspendê-la. Por esta razão seria preciso inventar algo que se equipararia às recordações da repressão familiar. O impasse sexual vem do impossível da relação sexual, isso “é de estrutura”, esclareceu Miller no manuductio.

O impossível é um dos nomes do real, e o real, per si, convida, requer que ficções sejam inventadas para tentar recobrir o seu furo. As ficções são uma maneira de dar forma, mesmo que mítica, ao furo da não-relação sexual.

A ordem familiar, tradicionalmente, traduz um mito, o Édipo, uma das maneiras de simbolizar algo deste real. Tentemos acompanhar Lacan quando ele diz que seria preciso inventar as recordações da repressão familiar. Ele também afirma que sempre se inventa, mesmo que elas não sejam verdadeiras.  Ou seja, a repressão familiar é uma ficção construída, não imaginada, algo da ordem de uma necessidade lógica para que o sujeito possa se situar frente ao desejo do Outro, função fálica, que organiza o caos da subjetividade, por isso a necessidade de inventar as recordações da repressão familiar, para colocar um limite, uma barreira ao gozo autoerótico. Freud disse, também em Mal-estar na civilização, que o Pai é uma proteção diante do desamparo. Na neurose há o Nome-do-Pai e a significação fálica, a fantasia recobre e constitui o campo da realidade, lhe dá uma fixidez, e oferece material para as ficções. O psicótico faz ficções tecendo um delírio, porque o Nome-do-Pai não comparece. Para as psicoses ordinárias, Miller propôs o “fazer-crer compensatório”, uma invenção bem particular. O perverso, por desmentir a castração, cria um substituto para o pênis, o fetiche. Todas elas são invenções para tratar o real.

Ainda em Televisão, Lacan fala dos jovens que ao se entregarem a relações sem repressão são acometidos pelos sentimentos de tédio e morosidade. Falta lembrança da repressão sexual, falta ficção, porém é efeito de quê?

Em “O mal-estar na civilização” [1929], Freud postula a renúncia pulsional, que o desvio dos objetivos sexuais ou a inibição da finalidade sexual da pulsão constitui a base do processo civilizatório. Esta renúncia deve ser economicamente compensada para que não se traduza em distúrbios, pois a pulsão sempre busca a satisfação, é seu propósito e sua vocação. Uma das saídas se dá pela formação do sintoma, uma satisfação substitutiva, um modo de obter satisfação frente à defasagem instalada pela inserção do ser na linguagem, frente à castração, como diria Freud.

Quando Lacan fala em “maldição sobre o sexo”, implica não uma promessa de bem-estar e sim a impossibilidade do “bem-dizer” sobre o sexo. Se colocarmos um hífen, “mal-dição”, para incluir aí a linguagem –  condição de falasser -, renuncia-se à possibilidade de dois fazer um, renuncia-se a satisfação autoerótica, instalando uma impossibilidade lógica, de haver um saber fazer com o Outro sexo por não haver um parceiro sexual “natural” para a espécie humana. A impossibilidade de um saber no real sobre a relação entre os sexos caracteriza a condição humana.

Como recuperar algo desta perda, patente pelo advento da linguagem, da perda da satisfação? Como bem-dizer o sexo? O gozo primordial perdido, após a operação da castração, pode ser recuperado por uma operação simbólica, que localiza, orienta o gozo, antes caótico, desorganizado. O falo dá um contorno ao caos inicial; para Lacan, trata-se de uma função, operada através da castração que permite ao sujeito organizar simbolicamente o gozo e encontrar satisfação a partir do Outro. O falo é um instrumento com o qual se pode lidar com a falta de um parceiro natural.

Para os dois sexos, lá onde falta um saber sobre o sexo, no inconsciente, inscreve-se a função fálica. O falo é então o referente comum para os sexos, masculino e feminino, porém cada um deles sustentará e exercerá esta função de maneira diferente. Não se trata de papéis imaginários, nem de conceitos ou comportamentos esperados para o homem ou para a mulher. O viril orienta o comportamento do homem, por sua subjetividade estar praticamente toda recoberta por esta função, a fálica, o que permite tomá-los como um conjunto; o mesmo não é válido para a mulher, parte de sua subjetividade fica fora deste referente, conserva-se fora desta lógica, impedindo a universalização do feminino. Por esta razão, Lacan fala que a mulher, não-toda submetida à função fálica, somente pode possuir o homem, o seu falo. O homem, “aquele que se vê macho sem saber o que fazer disto” (Lacan, Seminário 20), aborda a mulher através do objeto causa do desejo; às vezes um pequeno detalhe no corpo da mulher pode funcionar como condição para o homem se apaixonar. Estas são as maneiras do homem e da mulher buscarem recuperar a perda de gozo, pois o sexo biológico por si mesmo não indica o parceiro a nenhum dos indivíduos da espécie humana, e mais, não é isto que faz com que dois sujeitos se tornem parceiros. E mais, a busca não converge em encontro.

Para a psicanálise lacaniana, quando se estabelece uma parceria, ela é sempre sintomática, pois o sintoma, além de obstáculo, é mediação, é o melhor a ser feito. Neste sentido, bem-dizer o sexo é estabelecer uma parceria com o Outro sexo, cada um poder seduzir o parceiro a partir da particularidade da posição feminina ou masculina e de sua posição de sujeito.

Durante este ano de 2013 trabalhei o Curso Silet de Miller no Seminário de leitura da Clipp, que eu coordeno, e na Seção Clínica estamos discutindo o texto Radiofonia. Nestes dois textos encontrei algo que me esclareceu um pouco mais a dor e a delícia da condição do falasser, relacionada à diferenciação entre o real da ciência e o real da psicanálise. Em psicanálise operamos sempre a partir da contingência, tentamos situar o real a partir da contingência. Lacan fala em “fórmulas que, durante um tempo, elas formam uma assembleia com o real” , em “Radiofonia”, ao se referir ao famoso hipothesis non fingo de Newton, não finjo hipóteses, para dizer que são fórmulas que já estavam no real, escritas, prontas para serem descobertas. Miller disse que para a psicanálise “não é que no real esteja escrita uma fórmula, tal como Newton pôde fazê-lo. Devemos, pelo contrário, inferir que no real há uma fórmula não escrita: a da não relação sexual, […] visto haver uma fórmula que falta e que faz com que a linguagem continue a funcionar em chicanas infinitas.” . O sentido não se deixa capturar como um todo, senão pararíamos de falar, e mesmo quando o sentido foi capturado num enunciado, sempre abre para a pergunta: Mas, então, o que isso quer dizer?, demonstrando assim que há algo que não está escrito, não se escreve no real, o “não há” é uma fórmula que ancora o real a partir da função φx.

Não existe falta no real, ela só é apreensível por intermédio do simbólico. É o que nos esclarece o apólogo da biblioteca: falta um volume tal em seu lugar, que dá a devida dimensão que ali falta aquele livro. Esse lugar é apontado pela introdução prévia do simbólico no real. Por isso, essa falta pode ser facilmente preenchida pelo símbolo; ela designa a ausência e presentifica o que não está presente.
No Seminário 19 , há uma indicação clínica bem importante de Lacan quanto ao real ancorado: a angústia (intrusão do Real no Imaginário, sem intermediação simbólica). Enquanto sinal do real, a angústia pode se apresentar sem nenhuma ancoragem, como o pânico tão bem exemplifica por tratar-se da angústia pura e bruta. É preciso fazer consistir o sintoma, sintomatizar a angústia. Frente ao real da pulsão há que se erigir alguma proteção.

O sintoma, desde Freud, é uma forma de satisfação, um modo de obter gozo, de responder a “não-relação sexual”; porém o sintoma também se constitui num envoltório formal, apresenta-se de uma forma e possui um sentido inconsciente, por esta razão ele torna-se decifrável pela interpretação psicanalítica. Esta segunda formulação, por articular-se como uma linguagem, depende do Outro, envolvendo assim a dimensão da cultura. Busca-se recuperar algo perdido, o objeto primordial, para sempre perdido – isto se dá através do Outro, fonte de eterna angústia. Este é o fundamento que, ao aliar as dimensões do gozo, da satisfação pulsional, e do Outro da linguagem, faz do sintoma o sustentáculo do saber-fazer frente ao mal-estar da cultura e da existência de cada um no mundo.

As fobias demonstram a função de suplência do objeto fóbico. A partir de alguns casos clínicos, me perguntei se numa fobia de extraterrestre dentre outras se trataria efetivamente de um objeto fóbico? É notável que o medo avassalador e a impossibilidade de localizar este suposto objeto denota certo fracasso na circunscrição da angústia, diferentemente da eficiência que se observa nas fobias infantis de Hans ou a do Homem dos lobos, por terem um objeto localizável e, por consequência, evitável. Extra-terrestre é um nome que localiza um pavor, uma ficção extraída, provavelmente dos filmes e das conversas da infância dos anos 80-90.

Quando criança foi esta a matéria do imaginário que alguns encontraram para dar algum contorno às fantasias infantis. Hoje, o material oferecido pelo discurso da civilização é outro? As telas dos gadgets sequestram os olhares infantis; em que medida elas podem impedir a formação de ficções? A realidade virtual e a tecnologia em 3D produz, no corpo, a impressão de que se está presente na ação – restaria, então, nenhuma ou pouca distância para a criação fantasiosa, que serve de elaboração e de borda ao real da pulsão.

Extra-terrestre. Uma tentativa de ficção? Um quase objeto? De qualquer maneira, trata-se de um Outro não localizável no mundo, próximo demais e bastante frágil para proteger do real da pulsão. Uma satisfação também por demais obscura.

Conferência apresentada no Instituto de Psicanálise da Bahia, por ocasião da XIV Jornada “Clínica lacaniana: uma orientação ao real”, em 14 de dezembro de 2013.

LACAN, J. O Seminário – livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar Ed.,  2012, p.175.

Idem, p. 175.

Ibidem, p. 167.

LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003, p. 531.

LACAN, J.  Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003, p.422.

MILLER, J.-A. Silet: os paradoxos da pulsão, de Freud a Lacan. Jorge Zahar Ed., 2005, p.333.

LACAN, J. O Seminário – livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar Ed.,  2012, p.175.