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TORNAR-SE ANALISTA

TORNAR-SE ANALISTA:

da angústia ao desejo do analista.

 

Claudia Aldigueri Rodriguez

Fevereiro, 2010

 

To become a better teacher, seminário em metodologia do ensino da língua inglesa, revolucionou meu estilo de ensino. Trinta anos se passaram. Desta vez, Tornar-se analista[1], texto de Miller, discutido na Seção Clínica da CLIPP, em contraposição ao ser analista via identificações, me capturou e reativou questionamentos que marcam um caminho de busca em meio ao “frenesi de psicanálise aplicada”[2].

2009 chegou com a Jornada de Cartéis da CLIPP, as Coisas de fineza e o ENaPAOL: um turning point do meu tornar-se analista do outro, minha compreensão de até então. Tudo começou lá no Seminário X, passando pelo Seminário do Miller e desembocando na louca semana de BAL com os ventos soprados de Paris. Uma ideia inicial – o manejo da angústia – produziu a escrita de três textos. Da impessoalidade do primeiro para a marca subjetiva do terceiro texto, um “pôr de si” com matizes singulares.

Intrigar-me com a forma de lidar e manejar a angústia pelo viés da psicanálise me fez perceber que falava do meu tornar-se analista, da minha própria angústia e do meu desejo de analista.  Aí estava eu, a analista praticante em formação, debatendo-me no mar de questões suscitadas pela beleza da Angústia, de Lacan, pela sutileza das Coisas de fineza, de Miller e o ‘novo’ apresentado em BAL. E eu, onde me encontrava nesse aqui e agora? Como sustentar o lugar de objeto causa do desejo? Que lugar é esse de onde o analista acolhe o singular incomparável e derrapa quando se deixa deslumbrar ao sabor dos efeitos terapêuticos rápidos? Impossível sustentar esse lugar sem uma parceria muito íntima com a própria angústia.

Lacan leva o leitor a refletir sobre a angústia e o “desejo do qual se é o sujeito”[3] para só então investir no desejo do analista. Para isso, escolheu a constituição subjetiva como estratégia para nos aproximar dos eixos que o norteiam, angústia e castração. Essa construção alienada ao Outro desde o início é marcada pelo grito de angústia original do humano ao ser invadido pelo ar da vida. Uma segunda marca é gerada pelo resto de investimento libidinal não utilizado nessa construção: uma lacuna, uma falta, um vazio impreenchível onde se constitui o objeto a, objeto-dejetocuja função conjunta com a angústia será captar, polarizar e orientar o desejo do sujeito.

Se “a angústia é a via privilegiada de acesso ao objeto a[4], diz Miller em Angústia constituída, angústia constituinte, poderíamos pensar o desangustiamento do sujeito como única possibilidade de manejo da angústia, via psicanálise? Ora, se um sujeito dominado pela angústia está fadado ao fracasso, desangustiá-lo significa levá-lo a se deparar com possibilidades de transformação dessa angústia. Enquanto a angústia constituída autoriza a inércia, a permanência da repetição, do sintoma, a angústia constituinte, produtora de objeto a, permite ao sujeito a utilização do objeto produzido por ela para criar, inventar algo novo, como saída para o que não pode ser transformado, o incurável sinthoma.

Um processo aparentemente simples? Longe disso. Tudo passa pelo tornar-se analista,a via régia da própria análise em marcha e o desejo advindo daí. Inversamente à constituição subjetiva, tornando-se analista sendo analisante passa pela desconstrução das identificações fossilizadas por significantes, um processo que faz pasmar com o sem-sentido do gozo, o sintoma: aí, o inconsciente nada decifra, mas se aconchega ao sintoma, assumindo sua defesa e garantindo o gozo como “acontecimento do corpo substancial”[5]. Entretanto, isso só não dá conta dotornar-se analista. Se tornar-se sujeito exige o encontro com a angústia de castração e leva a um acontecimento de corpo, o sintoma, o tornar-se analista conduz a um saber lidar com a angústia e a um acontecimento de sujeito: aqui, talvez, um sinthoma que permite o sujeito ocupar o lugar do objeto a.

Não há como “ser analista sem ser analisante”[6]; assim, dois em um: alguém que através de análise estabeleça parceria com seu inconsciente e o sujeito suposto saber e possa se responsabilizar pelo trabalho de analista de si mesmo, um “analisante perpétuo”[7]. Dois em um, porém disjuntos.

Já desde o início de seu Seminário X, Lacan mostra preocupação com o manejo da angústia e a relação transferencial. Para tanto, vai fundo nas questões da contratransferência, enfatizando que ela é consequência da “participação do analista”8 por um “problema do desejo do analista”[8], portanto criando, assim, obstáculo à análise. Se a angústia está próxima do desejo do analista, algo falhou em sua desconstrução e a forma de lidar com a castração é manca; logo, torna-se impossível ocupar o lugar do objeto causa de desejo.

Entendo o desejo do analista, desejo vazio, como uma bússola que marca o rumo na direção de um tratamento. Se pensarmos que desejo tem “identidade de lei”[9], arriscaria dizer que o desejo do analista, correlativamente, é lei – a lei do analista. Esse desejo-lei o impede de considerar o analisante como objeto, pois embora “a função do desejo-lei esteja no plano do amor […], não diz respeito ao objeto amado”[10], ao desejo do analisante de ocupar a posição desse objeto.

Não foi à toa que um caso da minha clínica, paralelo à leitura de A angústia, me remeteu ao que chamo de meu segundo estádio do espelho aos dezessete anos, no momento em que a paciente, mulher cujo rosto expressava personalidade, testemunhava sua “deformação” e “monstruosidade”, refletida e captada nos espelhos.  Estupefata, percebi-me esparramada na contratransferência… Fugira da função do analista para a posição de sujeito, assim do nada, pensava eu. Do nada? Imagine! “Um analista continua a aprender com seu inconsciente”[11], e o meu se mostrava excelente professor enquanto eu estava me tornando sua “assinante”[12]vitalícia.

2000 inove, um significante contingencial imperativo que gerou desdobramentos criativos só percebidos après coup. Ao longo do ano, três momentos distintos: a turbulência do encontro, a tentativa de travessia da minha própria angústia; uma descoberta na escrita dos textos, o resultado do esforço de interação com A angústia de Lacan e o novo na psicanálise; e a compreensão recente de que “ser analista não é analisar os outros, é continuar a se analisar, continuar a ser analisante: é uma lição de humildade”[13].

Referências bibliográficas

COSENZA, D. “Desejo do analista e Nome-do-Pai”, em Opção Lacaniana. No. 50. São Paulo: Eolia, 2007.

LACAN, J. “Nota Italiana”, em Outros escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003.

“A angústia”, em Seminário, Livro X. Rio de Janeiro: JZE, 2005.

MILLER, J.-A. Coisas de fineza em psicanálise. Publicação EBP, 2008.

             (2004). “Angústia constituída, angústia constituinte”, excerto da palestra Desangustiar com a psicanálise, apresentada na Jornada da ECF, 2/3-10-2004.

 


[1] Miller, J.-A. Lettre Mensuelle                                             

[2] Miller, J.-A. 1ª aula do Seminário de Orientação Lacaniana, Coisas de fineza em psicanálise. 2008

[3] Miller, J.-A. Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI? In: Opção lacaniana No. 55. SP. 2009. p.16

 

[4] Miller. J.-A. Angústia constituída, angústia constituinteexcerto da palestra Desangustiar com a psicanálise,apresentada na Jornada da ECF, 2/3-10-2004. p 2

[5] Miller, J.-A. 19ª aula do Seminário de Orientação Lacaniana, Coisas de fineza em psicanálise. 2008

[6] Miller, J.-A. Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI? In: Opção lacaniana No. 55. SP. 2009. p.16

[7] Miller, J.-A. Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI? In: Opção lacaniana No. 55. SP. 2009. p.21

[8] Idem p. 165

[9] Idem p. 165

[10] Idem p. 170

[11] Miller, J.-A. 2ª aula do Seminário de Orientação Lacaniana, Coisas de fineza em psicanálise. 2008

[12] Miller, J.-A. “São os acasos que nos fazem ir a torto e a direito”. In: Opção lacaniana No. 55. SP. 2009. p. 32

[13] Miller, J.-A. 2ª aula do Seminário de Orientação Lacaniana, Coisas de fineza em psicanálise. 2008