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TRANSIDENTIDADE: QUE IDENTIDADE ?

Dalila Arpin (ECF/AMP)

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Na atual polêmica sobre as “disforias de gênero”, uma questão sempre surge: a urgência do diagnóstico precoce. Os defensores dos procedimentos médicos de transição advogam a importância de diagnosticar a disforia aos primeiros sinais de inadequação, e chegam a dizer que o atraso no tratamento poderia levar a suicídios. Como podemos acompanhar, da melhor forma possível, essas crianças que não se reconhecem em seu corpo anatômico, “sem ceder à pressão de uma resposta que se pretende inequívoca e generalizada” (1)? Levar suas palavras a sério significa, necessariamente, impor a uma criança ou a um jovem um tratamento médico e uma categoria ou, até mesmo, uma identidade específica?

Jean-Claude Maleval (2) destaca o fato de que, ao mesmo tempo que a disforia de gênero (introduzida em 2013 pelo DSM 5) não é considerada como patológica, ela está sujeita a tratamentos médicos.

A chamada do Observatório do discurso Ideológico da criança e do adolescente se questiona sobre a dimensão que tomou a transidentidade na atual conjuntura: “A liberdade de expressão sobre o tema da dita ‘transidentidade’ por si só permitiu que o fenômeno assumisse tal escala? Ou o ativismo de certas associações militantes LGBTQI, às vezes muito ofensivo e divisionista – potencializado pelas redes sociais – induz pressões políticas sobre os jovens e suas famílias?”(3). A chamada sugere que “a ‘disforia de gênero’, conforme definida no DSM, seria mais uma ‘agenda política’ como o TDAH19”. A prova disso é a “paixão pelas classificações, pelos diagnósticos de modo a rotular crianças. […] Mas isso não seria reduzir essas crianças a identidades forçosamente fixas? Não corremos o risco de transformar essas crianças-identidades [enfants-identités] em estandartes da causa dos adultos?” (4). Que identidade podemos dar para sujeitos que vivem sua anatomia como um erro da natureza?

Promovida pelas teorias de gênero, a transidentidade vem apresentando um certo aumento nos discursos contemporâneos. “Identidade de gênero, escolha de gênero, transgênero, esses são os termos que hoje servem literalmente como um ‘tapa-sexo’ no discurso reinante. Eles levam a uma “ideia simples”: cada um ou cada uma deve poder escolher seu gênero” (5), destaca Daniel Roy.

No entanto, por trás do projeto trans de obter uma identidade específica para cada “gênero” esconde-se o fato de que as teorias de gênero apreciam a fluidez. E, a isso, os transexuais se opõem. “O que caracteriza os autores do gênero […] é a rejeição, a negação, a anulação da oposição masculino/feminino, da diferença sexual. Isso explica porque o transexual é um verdadeiro obstáculo epistemológico para eles, visto que ninguém acredita mais na diferença sexual do que um verdadeiro transexual”(6), como diz Jacques-Alain Miller.

Definida pela Comissão Consultiva Nacional de Direitos Humanos (CNCDH – Commission nationale consultative des droits de l’homme), instituição nacional responsável por sua promoção e proteção, a transidentidade consiste na discrepância que as pessoas sentem entre seu sexo biológico e sua “identidade de gênero”, aquela em que se encontram. Esta categoria inclui pessoas que foram operadas ou não.

Como psicanalistas, interessa-nos o modo como a ideia de uma transformação sexual tomou forma, ganhou corpo; a insatisfação a que gostaria de responder; uma satisfação inesperada encontrada; o insuportável que exige um ato que o eliminaria, etc. Às vezes, tem-se que explorar as várias modalidades que pode levar a este plano. Quando uma transição está em andamento, a atenção é dada a como o sujeito acolhe os novos efeitos na imagem ou a experiência do corpo moldado pela ciência. O que esses casos de transformações nos ensinam é que, embora o corpo possa ser modificado por procedimentos médicos (hormonais ou cirúrgicos), os modos de satisfação não podem ser modificados necessariamente, e alguns sujeitos continuam a encontrar a satisfação sexual pelos mesmos meios de antes.

Surge então outro problema epistemológico: o gênero de um sujeito depende da aparência física (caracteres sexuais primários e secundários, modificados ou não) ou de seu modo de gozar? J.-A. Miller sugere que “a equação gênero = modo de gozar” poderia trazer “para a psicanálise, o conceito de gênero de uma forma, ao mesmo tempo, digna e inédita” (7)

Uma lacuna, independentemente de sua dimensão, entre o sexo anatômico e a identidade de gênero, é suficiente para atribuir ao ser falante uma categoria? Muitas vezes, acolhemos sujeitos que estão mais ou menos de acordo com sua anatomia. O conflito entre a sexuação e a anatomia não é, de forma alguma, privilégio de uma categoria clínica. Uma histérica pode perfeitamente aspirar a tornar-se homem e um obsessivo pode ter uma fantasia de submissão em relação a outro homem. Além dos estereótipos, o que é que define, precisamente, um homem ou uma mulher?

A identidade do sintoma

Na medida em que nenhum significante pode vir a representar o sujeito, este pode estar situado alternadamente sob um significante ou sob um outro. Quando é disponibilizada a identificação como exclusiva, os desvios de identidade jamais estão longe. Nos casos de identidade de gênero, as insígnias sexuais nem sempre se confundem com as práticas singulares de gozo. Numa análise, trata-se de identidade, mas de uma forma completamente diferente: “Logo na primeira lição de L’insu que sait de l’une bévue (8), Lacan se questiona sobre a identificação. […] Ele sugere que a psicanálise poderia ser definida […] como o acesso à identidade sintomal, quer por não se contentar com o que os outros queriam, por não se contentar em ser falado pela própria família, mas de acessar a consistência absolutamente singular do sinthoma” (9).

Não há nada de compacto nessa identificação, diferentemente das suposições do gênero. Este é um novo nome do sujeito e, como tal, um furo. A nomeação revela um vazio na designação. Funciona como um nome próprio, que vem furar o sentido. É o traço do que se fixa ao traumatismo, que Lacan equivocou com troumatisme. Este é o lugar que foi furado [trouée] por uma irrupção do real do gozo. O nome encontrado em uma análise recupera a marca primordial da erupção do gozo para transformá-lo. Ele é o herdeiro deste furo, com o qual todo falasser é levado a fazer com o seu sinthoma. O sinthoma assegura que há algo que não pode ser dissolvido, que não pode ser curado. O sinthoma é um dos nomes do incurável, como diz J.-A. Miller em “Coisas de fineza” (10).

Em sua leitura do último ensino de Lacan, J.-A. Miller nos convida a considerar o desenvolvimento sobre o gozo feminino como o modelo do gozo (11). Assim, para cada falasser, trata-se de fazer com [faire avec] o gozo que afeta seu corpo. O sintoma é a maneira como temos de tentar capturar esse gozo que nos escapa.

Isso equivale a dizer que nenhuma especificidade se aplica a sujeitos que se consideram gays, lésbicas, bi, trans, drag queens, drag kings, machorra [butch] (12), etc. Para cada um de nós, trata-se de “colocar como primeiro o corpo que temos” e de obter o efeito principal que é: porque temos um corpo, temos um sintoma, isto é, um programa singular de gozo.

No entanto, pessoas queer dão uma nomeação aos sujeitos que tentam se encontrar, identificando-os com nomes que são compartilhados por outras pessoas, à forma de uma insígnia. J.-A. Miller define a insígnia como uma modalidade de gozo elevada à dignidade de significante mestre, que permite a constituição de um laço social. O percurso de uma psicanálise vai na direção oposta: partimos “de um processo de desidentificação do sujeito às insígnias do Outro para terminar em uma identificação do sujeito com seu programa singular de gozo”. Em sua recente entrevista com Jacques-Alain Miller, Éric Marty pôde dizer que, na perspectiva dos estudos de gênero, Judith Butler não dá espaço ao sujeito. Ele é o efeito das normas sociais que o determinam sem nenhuma margem de manobra (13).

Cabe à psicanálise devolver ao sujeito sua voz, dar lugar ao seu dizer e ao seu modo de satisfação mais singulares, para que ele ou ela possa encontrar uma inscrição na diferença sexual que lhe convenha, sem necessariamente se abrigar sob a bandeira de uma identidade do prêt-à-porter.

Tradução: José Wilson. R. Braga Júnior (CLIPP)

1. Gorini L., « Trans express », Lacan quotidien n° 918, 4 mars 2021.

2. Maleval J.-C., « Dysphorie de genre, un fourre-tout précoce », Lacan quotidien n° 918.

3. Appel de l’Observatoire des discours idéologiques sur l’enfant et l’adolescent : impact des pratiques médicales sur les enfants diagnostiqués « dysphoriques de genre », Lacan quotidien, n° 918.

4. Ibid.

5. Roy D., « Nous sommes embarqués », Lacan quotidien n° 918.

6. Marty E & Miller J.-A., « Entretien sur « Le sexe des Modernes », Lacan quotidien n°927.

7. Ibid.

8. Lacan, J., Le séminaire, L’insu que sait de l’une bévue, cours du 16 novembre 1976, Ornicar ?, n° 12-13.

9. Miller J.-A., « En deça de l’inconscient », La Cause du désir, n° 91, p. 102.

10. Miller J.-A., « L’orientation lacanienne. Choses de finesse », cours du 12 novembre 2008, inédit.

11. Miller J.-A., « L’orientation lacanienne. L’Etre et l’Un, cours du 23 mars 2011, inédit.

12. Terme anglais qui se traduit par « hommasse » et s’applique à des personnes de sexe féminin qui ont toute l’apparence d’un homme, que ce soit au niveau vestimentaire, physique ou dans leur attitude.

13. Cf. Marty E. & Miller J.-A., « Entretien sur Le sexe des Modernes », op. cit.