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A LOUCURA DAS MULHERES

Carmen Silvia Cervelatti

Marguerite Anzieu, a Aimée de Lacan ocupou lugar da filha morta queimada, é cuidada pela irmã mais velha da qual tenta se emancipar casando; quando engravida aparecem ideias delirantes persecutórias que se agravaram com a morte deste filho; aos 38 anos tenta matar a mulher que corresponde ao seu ideal de ser uma mulher reconhecida. Maria Riva, filha de Marlene Dietrich sempre foi fascinada pela imagem feminina e fálica de sua mãe e preencheu sua vida dando sustentação à carreira de sua mãe. Camille Claudel foi hostilizada pela mãe e não conseguiu legitimar sua relação com Rodin, uma relação devastadora que a levou ao hospício. As irmãs Papin tinham uma relação bastante submetida à mãe: depois do crime, Christine teve uma crise psicótica exigindo a presença da irmã Léa, com a qual havia desenvolvido uma relação homossexual e de dependência mútua; Léa estava mais numa posição subjetiva de submissão à Christine, que a dominava completamente, pois quando separada da posição delirante da irmã ela se pacificou, não apresentando qualquer fenômeno que indicasse uma psicose. Estes são alguns dos casos utilizados por Marie-Magdeleine Lessana nos quais se demonstra a devastação sendo causada pela relação mãe-filha.

A devastação, apesar de se manifestar nos sujeitos de posição subjetiva feminina, não é encontrada somente na psicose e na relação da filha com a mãe, mas pode ocorrer também com a mulher e seu parceiro e com a mãe e seus filhos. Para explicitar estas manifestações, aproximarei as leituras de Freud e de Lacan acerca da sexualidade feminina e, desta maneira, trazer alguns parâmetros para a clínica.

O pré-edípico e o Édipo feminino

“Há muito tempo, por exemplo, observamos que muitas mulheres que escolheram o marido conforme o modelo do pai, não obstante repetem para ele, em sua vida conjugal, seus maus relacionamentos com as mães. O marido de tal mulher destinava-se a ser o herdeiro de seu relacionamento com o pai, mas, na realidade, tornou-se o herdeiro do relacionamento dela com a mãe. Isto é facilmente explicado como um caso óbvio de regressão. O relacionamento dela com a mãe foi o original, tendo a relação com o pai sido construída sobre ele; agora, no casamento, o relacionamento original emerge da repressão, pois o conteúdo principal de seu desenvolvimento para o estado de mulher jaz na transferência, da mãe para o pai, de suas ligações objetais afetivas.” . A fase pré-edipiana deixa rastros importantes para a vida de uma mulher, mesmo depois do Édipo, é o que nos diz Freud em 1931, em seu texto Sexualidade feminina.

São considerações como esta que mostram a genialidade freudiana ao retificar as posições anteriormente tomadas; no final de sua obra, ele reconhece a surpresa da compreensão da fase pré-edipiana nas meninas, “tal como a descoberta, em outro campo, da civilização mino-miceniana por detrás da civilização da Grécia. Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me parecia tão difícil de apreender nas análises – tão esmaecido pelo tempo e obscuro e quase impossível de revivificar – que era como se houvesse sucumbido a uma repressão especialmente inexorável.” . Ele reconhece a importância que não havia sido dada até então à fase pré-edipiana nas mulheres: ela é mais importante nas mulheres que nos homens. Dá, ainda, alguns exemplos das novas ideias a que chegou na sua clínica:  essa fase de ligação com a mãe estaria relacionada à etiologia da histeria e que nessa dependência com a mãe encontra-se o temor de ser morta, talvez de ser devorada por ela, germe da futura paranoia em mulheres.

A importância da fase pré-edipiana foi mais bem explicitada dois anos depois, quando Freud identifica que as duas camadas, a pré-edipiana e a advinda do complexo de Édipo, deixam marcas, nenhuma é adequadamente superada, algo delas subsiste. Na fase pré-edipiana, a mãe é tomada como modelo e se caracteriza pela vinculação afetuosa da menina com sua mãe, sendo decisiva para o futuro de uma mulher: seu papel na função sexual e nas tarefas sociais; com esta identificação ela adquire o que constituirá no “motivo de atração para um homem” .

Da mesma maneira que encontramos no final da obra freudiana uma retificação de sua posição acerca da importância da fase pré-edipiana na mulher, há em Lacan dois momentos em que ele fala da devastação: 1) Em 1858, quando a atribui ao pai legislador, por excluir o Nome-do-Pai de sua posição no significante e, 2) em 1973, com “O aturdito” e as “Conferências nas universidades norte-americanas”, quando a devastação se dá na relação mãe-filha.

Em “O aturdito”, Lacan diz que a devastação é para a maioria das mulheres uma dor experimentada na relação com sua mãe, “de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação” . Estas palavras guardam íntima relação com as de Freud, ou seja, que a menina culpa sua mãe pela falta do pênis e não a perdoa por esta desvantagem. Desta maneira, podemos entender que há algo aberto, que conserva uma falta e como um fato próprio da sexualidade feminina, que independeria das estruturas clínicas determinadas pelo drama edípico. Os fenômenos de devastação guardam alguma proximidade com a psicose, mas não é exclusividade de seu campo, pois abrange a loucura nas mulheres, é o que vemos nas irmãs Papin quando se entende que não se tratava de psicose em Léa, pois a separação da irmã psicótica teve um efeito de pacificação. Isso também explica que não é possível fazer uma classificação a partir da devastação.

Neste mesmo texto, Lacan opôs a castração no Édipo feminino à devastação. Poderíamos pensar, então, que aquilo que se manifesta como devastação trata-se de algo que se conservou fora do alcance do Édipo, fora da metaforização do desejo da mãe pelo Nome-do-Pai na metáfora paterna, por isso não seria um campo exclusivo da psicose e sim da posição feminina?

A posição inicial da menina no Édipo é de castração, o corpo biológico lhe dá esta condição, fazendo da mulher “peixe na água”, como disse Lacan nessa ocasião. Freud se referiu à percepção de uma falta, inicialmente marcada pela ausência do pênis – eu não tenho o que o outro tem. Este fato biológico, mesmo recoberto pelo mito, pelo drama edípico, dá sustentação à tarefa que toda menina terá em sua vida de se haver com uma parte de si, que ultrapassa a ausência do órgão, seja por sua forma, seja por seu signo. Ou seja, a mulher é não-toda submetida à castração, conforme Lacan desenvolveu nos anos 70, em seu Seminário 20: Mais, ainda.

A visão do órgão masculino instala a inveja do pênis, tanto que é pensada por Freud como um ponto presente ainda no final das análises das mulheres (em Análise terminável e interminável), o famoso rochedo da castração. “Sentem-se injustiçadas, muitas vezes declaram que querem ‘ter uma coisa assim, também’, e se tornam vítimas da ‘inveja do pênis’; esta deixará marcas indeléveis em seu desenvolvimento e na formação de seu caráter, não sendo superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo dispêndio de energia psíquica.”

O complexo de Édipo feminino é o resultado de um processo bastante demorado, não é destruído, mas é criado pela influência da castração e jamais é superado pela mulher, porque nela a castração não produz efeitos destrutivos como no caso do menino, que por esta razão resolve o Édipo. Em contrapartida, a transcrição do objeto materno para o objeto paterno se dá na medida em que algo escapou à catástrofe, à ligação anterior à mãe, abrindo caminho à feminilidade .

O que escapa à catástrofe da relação anterior ao Édipo abre caminho à feminilidade, mas isso não é o todo, o Édipo feminino persevera, não é destruído, jamais é superado, conserva algo de aberto, muito provavelmente causado pelos remanescentes da ligação pré-edipiana.
Isso corresponde ao desejo da mãe, postulado por Lacan na primeira parte da fórmula da metáfora paterna. Inicialmente, a criança quer saber o que orienta seu desejo, para assim calcular seu lugar. A sexualidade feminina nos dá notícias de um certo fracasso, se não for exagero dizer isso, da metáfora paterna, pois o falo não recobre todo o campo do desejo da mãe. Por isso a mulher é não-toda sujeita à função fálica. Algo do significado para um sujeito frente ao desejo materno permanece enigmático já que a mãe também é mulher e não há como transmitir à sua filha o que é ser mulher, algo na mãe escapa à lei simbólica, ou seja, ela mesma é não-toda submetida à função fálica.

Na metáfora paterna, o desejo da mãe é limitado pelo falo mediante o Nome-do-Pai, fazendo uma barreira à satisfação de ser o objeto exclusivo do desejo da mãe. “Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão – a mãe é isso. Não se sabe o que pode lhe dar na telha, de estalo fechar sua bocarra […] Há um rolo, de pedra, é claro, que está lá, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que põe a salvo se, de repente, aquilo se fecha.”

A não limitação do gozo na mulher e a devastação

Os falasseres se dividem entre duas posições no que diz respeito à sexuação. Do lado homem, a exceção à castração, representada pelo pai primevo, totêmico, funda a regra de que todos, como um conjunto, estão marcados pelo falo, pela castração. Do lado mulher, não há esta exceção e não há a possibilidade de todas serem tomadas como um conjunto fechado, por isso só podem ser tomadas uma a uma e são não-todas sujeitas ao falo, como pudemos acompanhar anteriormente. Há algo em seu gozo que ultrapassa, que está fora do alcance do limite fornecido pelo falo, há uma infinitização do gozo na mulher, que a deixa vulnerável à devastação.

Tendo em vista que o sujeito busca a satisfação no Outro, Jacques-Alain Miller, em A teoria do parceiro , propôs várias maneiras de se estabelecer esta parceria, já que cada um joga sua partida na vida, cada um visa o Outro para dele extrair seu mais-de-gozar. Parceiro-sintoma é uma nova maneira de definir o grande Outro, é o Outro definido como meio de gozo, pois ele é o lugar do significante e também é representado pelo corpo.

A mulher, dividida entre dois modos de gozo, busca no homem o falo, mas também faz parceria com a falta do Outro, o significante do Outro barrado, o que a deixa aberta a um desvario especial. Miller apresenta várias pantomimas de desvario feminino: bancar a louca; personalidades múltiplas; distúrbios da identidade, fenômenos do tipo oniróide, que foram referidos à histeria; fazer do homem um deus ou deixá-lo louco: ela procura consistência no homem, mas oferece inconsistência, razão deles nunca saberem o que elas querem, ocupando a posição de Outro faltante. O mesmo acontece quando ela exige que o parceiro fale e a ame, ou seja, o parceiro-sintoma do falasser feminino tem a forma erotomaníaca.

Da posição de não-toda, a demanda de amor (que tem potência de infinitude) é endereçada ao Outro barrado e retorna ao parceiro feminino como devastação, porque este lugar é um lugar não cerceado, não há limite, tende ao infinito. O parceiro-sintoma da mulher torna-se, assim, o parceiro-devastação.

“Uma mulher tem sempre um ponto de devastação, que não há relação com a lei que possa poupá-la disso, no mesmo sentido em que Lacan dizia que uma mulher tem sempre algo de perdida.”

Uma palavra sobre o corpo. Para Lacan, o homem o gozo é localizado no órgão, enquanto que a mulher goza no corpo, por isso Lacan convocou as mulheres para que dissessem como gozam, resposta: nem ao menos um pio.

Lessana, M-M, Entre mère et fille: un ravage, Ed. Fayard.

Freud, S. Sexualidade feminina, ESBOCSF, vol.XXI, Rio de Janeiro: Imago Ed., p.265.

Idem, p.260-261.

Freud, S. “Feminilidade”, in Novas Conferencias Introdutórias sobre psicanálise. ESBOCSF, vol.XXII, Rio de Janeiro: Imago Ed., p.133.

Lacan, J. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.586.

Lacan, J. “O aturdito”, in Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.465.

Freud, S. “Feminilidade”, in Novas Conferencias Introdutórias sobre psicanálise. ESBOCSF, vol.XXII, Rio de Janeiro: Imago Ed., p.125.

 Freud, S. Sexualidade feminina, ESBOCSF, vol.XXI, Rio de Janeiro: Imago Ed., pp.264-265.

Lacan, J. O Seminário – livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p.105.

Miller, J.-A. “A teoria do parceiro”, in Os circuitos do desejo na vida e na análise. EBP – Contra Capa Livraria, 2000.

Miller, J.-A. O osso de uma análiseAgente EBP-Ba, 1998, p.129.