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Atualidades Psicanalíticas #008

Interpretando a Corrida Presidencial dos EUA como um Sintoma

por Jorge Assef

 Em 26 de setembro de 1960, foi realizado o primeiro debate presidencial televisionado da história dos Estados Unidos. Os presidenciáveis eram John F. Kennedy e Richard Nixon. Pela primeira vez na história, os candidatos da maior potência mundial adaptaram sua linguagem aos códigos da televisão para 70 milhões de telespectadores.

A vantagem foi amplamente obtida por um jovem de 43 anos, que havia ensaiado durante dias com consultores especializados em imagem televisiva, tomado banho de sol pela manhã e dormido uma hora antes de ir para o estúdio de TV, vestido com um terno escolhido para se destacar da cenografia do set e da maquiagem que realçava seu rosto de ator de cinema.

Depois de perder a eleição, Nixon declarou: “Meu conselho para o candidato que está por vir é: confie nos produtores de televisão, deixe-os fazer a maquiagem mesmo que você odeie, que eles te digam como se sentar, como escovar o cabelo …”

A estrutura dessa disputa pública durou uma hora, incluindo perguntas de uma banca de jornalistas e pronunciamentos de encerramento. Assim, inaugurou-se a era do marketing político voltado para a mídia de massa. E o que não foi discutido é que o comportamento de ambos os candidatos foi exemplar, ambos respeitaram as regras acordadas como método de debate.

Agora, tem-se falado muito sobre o último debate presidencial dos Estados Unidos entre os candidatos Donald Trump e Joe Biden.

Trump e Biden lançaram várias ofensas, como “palhaço”, “racista”, “inútil”, uma retórica construída pela oposição de antagonistas: “nós contra eles”, acusações cruzadas de radicalismo que apenas exacerbam as perspectivas extremistas desenvolvidas pelos algoritmos de redes sociais, etc. O que ambos os lados concordam é que o debate não respeitou regras e métodos. Por isso a internet estava repleta de artigos que remetiam ao exemplo do debate histórico de 1960.

É interessante lembrar que enquanto ocorria o debate entre Kennedy e Nixon, napalm ateava fogo na selva do outro lado do mundo onde se travava a Guerra do Vietnã, um dos capítulos mais sombrios da história americana que ainda está presente em suas produções culturais.

Francis Ford Coppola filmou Apocalypse Now baseado no romance The Heart of Darkness de Joseph Conrad. A história conta a missão do Capitão Willard no Vietnã. Ele foi encarregado de localizar e assassinar o Coronel Kurtz.

Kurtz, que fora um destacado exemplo do Exército dos Estados Unidos, instalou-se nas profundezas da selva cambojana e criou um sistema de crueldade e terror com a única missão de satisfazer seu empuxo para gozar.

O filme atinge seu ápice conceitual quando Willard finalmente conhece o Coronel Kurtz, interpretado pelo inimitável Marlon Brando. Kurtz faz a Willard uma pergunta fundamental: “O que você acha dos meus métodos?” Willard responde: “Não vejo métodos“, então Kurtz sorri, revelando a tese de Coppola: o Vietnã foi o túmulo da racionalidade ocidental.

A corrida presidencial dos Estados Unidos em 2020 às vezes sugere que o Coronel Kurtz finalmente venceu a batalha cultural, e ele sorri, zombando do slogan da campanha republicana, “Torne a América grande novamente.”

É claro que o Outro está em queda livre, não há mais regras, já que ninguém ocupa o lugar da exceção que poderia funcionar como fiadora do método pautado no princípio cartesiano, berço da razão e da ciência, esperança para o futuro.

Ao contrário, na esteira do declínio das lideranças, tudo o que resta é o marketing político desprovido de conteúdo, os gigantes das redes sociais, o declínio da modéstia e um empuxo para gozar que promove o populismo de esquerda e da direita, radicalizando a política , afogando-se em fanatismo.

Mais uma vez, como J.-A. Miller diz em seu seminário, O Outro Que Não Existe e Seus Comitês de Ética, os Estados Unidos são o lugar onde os sintomas do século 21 podem ser decifrados.

Não podemos deixar de mencionar que tudo isso acontece em meio a um cenário distópico global, a pandemia de COVID-19. Assim, as contingências e consequências deste ano de 2020 atingem os lugares de onde poderia ser exercido um poder que comanda o discurso, evidenciando o que dizia Lacan em 1969: … esse poder está agora mais atrapalhado com isso do que um peixe com uma maçã, porque, de todo modo, do lado da ciência, acontece alguma coisa que vai além da sua capacidade de controle. (1)

 

Traduzido por José Wilson R. Braga Jr.

(1) LACAN, J. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro, p. 233 – Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Texto publicado na Lacanian Review Online em 16/10/2020 no link abaixo
https://www.thelacanianreviews.com/interpreting-the-us-presidential-race-as-a-symptom/