Vera Lúcia Dias
Ao caminhar um pouco pelo curso de Miller ministrado entre 2006 e 2007 e cuja publicação em português carrega o título de Perspectivas do Seminário 23 de Lacan, pude pensar que, para aqueles que desejam adentrar nas especificidades da psicanálise de orientação lacaniana, este é um dos trajetos que se mostra fundamental.
Partindo do conceito de inconsciente transferencial, Miller introduz também o conceito de inconsciente real, localizando-o no texto de Lacan Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, escrito imediatamente após o término do Seminário 23, O Sinthome.
Do ponto de vista cronológico é notório que, entre o momento da apresentação propriamente dita do seminário 11 e a posterior escritura do prefácio citado, há um longo intervalo de tempo, já este seminário foi proferido no ano de 1964, enunciação decorrente do rompimento de suas relações com a Associação Internacional de Psicanálise, e a escritura do prefácio foi realizada em 1976.
Em uma apreciação da leitura que Miller faz do “Prefácio …” é possível observar a ênfase que ele dá à frase de Lacan:
“Quando (…) o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos a certeza de estar no inconsciente”.
Parece que o propósito de Miller ao sublinhar essa passagem é justamente mostrar que, com esta elaboração (para além do inconsciente freudiano que pressupõe uma ligação entre S1 e S2), Lacan estaria apresentando também outro estatuto do inconsciente, um inconsciente distinto daquele elaborado nos padrões freudianos. Distinção que marca a instituição de um inconsciente real, um inconsciente que se mostra desconectado de qualquer função interpretativa.
Com base em recortes feitos no texto de Miller, é possível verificar que, ao articular a transferência a partir do sujeito suposto saber, Lacan liga o inconsciente à transferência. Vemos em Televisão, por exemplo, que Lacan enuncia o fato de uma manifestação sintomática do inconsciente ser, enquanto tal, uma relação com o sujeito suposto saber.
A partir desse curso de Miller percebe-se, também, o peso que no contexto do “Prefácio…” recebem as palavras “solitário” e “urgência”. A primeira, “solitário” indica o termo que Lacan elegeu para qualificar a operação freudiana, visto localizar-se, no texto de Lacan, o Um-sozinho como pivô do inconsciente real. A segunda palavra “urgência” refere-se à modalidade temporal que responde ao advento ou à inserção de um traumatismo.
“A palavra urgência, para Lacan, é o nome do que aparece, do que põe em movimento a petição do analisante em potencial”.
Além disto é curioso notar que, aquilo que Lacan chamou de “acontecimento Freud”, Miller aborda nomeando como “traumatismo Freud”. Considero que tal abordagem serve para marcar não somente o corte que Freud introduziu no discurso universal, mas também para situar as repercussões decorrentes desse corte.
Recordando o que disse Lacan no Seminário 23, O Sinthome, que é na medida em que Freud articulou o inconsciente que ele reage a isso, e que o real é, portanto, sua resposta sintomática à articulação freudiana do inconsciente, fazendo coro com Miller, poder-se-ia dizer que o real é uma reação de Um, de Um só, à articulação freudiana do inconsciente.
Numa referência ao ensino de Lacan, Miller diz que a ambição desse ensino é a de repercutir o traumatismo Freud. E faz lembrar que as repercussões de um traumatismo são o que de fato é possível apanhar nas malhas de uma dialética.
Quando marca o fato de a psicanálise inventada por um solitário ter passado a ser praticada aos pares, Miller não deixa de sublinhar que se trata de uma inovação. Pois se, por um lado a psicanálise aos pares opera a partir do sujeito suposto saber – a partir de uma conexão mínima significante, por outro, com a mudança no estatuto do inconsciente, essa conexão se desfaz.
Trazendo um pouco das considerações que Lacan teceu sobre a alucinação do Homem dos Lobos, Miller destaca algumas leituras que elucidam as manifestações erráticas prevalecentes na psicose. Manifestações consideradas como uma figuração do que Lacan chamará “real sem lei”, referindo-se a um real disjunto do simbólico e que o supera.