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DESENREDANDO JOYCE

Angelino Bozzini

“O livro está me dando uma reconciliação com tudo,
me explicando coisas adivinhadas,
enriquecendo tudo. Como tudo vale a pena!
A menor tentativa vale a pena.
Sei que estou meio confusa,
mas vai assim mesmo, misturado.”
Clarice Lispector (carta a Fernando Sabino sobre o Grande Sertão de GR)

Nonada! Palavras que Você leu foram fora de sentido não.

 

Imagem: Angelino Bozzini

Imagem: Angelino Bozzini

O encontro com a obra de Joyce propicia a Lacan a possibilidade de aprimorar sua teoria do “nó borromeano”, bem como sua hipótese sobre a psicose. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e uma das características da estrutura psicótica seria a foraclusão do significante Nome-do-Pai, ordenador do registro Simbólico, o desencadeamento do surto psicótico se daria no momento da desamarração do nó borromeano. Em Joyce, Lacan encontra uma nova solução para a manutenção do nó pela via de uma suplência levada a cabo por um sinthome, no caso de Joyce, sua escrita.

Se a teoria lacaniana nos ajuda a entender qual é a estrutura psíquica que organiza a escrita de Joyce, ela não nos leva muito longe no deciframento dessa escrita. Guimarães Rosa, por outras veredas da escrita, chega a alguns resultados similares aos obtidos por Joyce e pode nos servir de chave ao seu deciframento. Em seu conto Desenredo do livro Tutaméia, faz uma homenagem a Joyce, especificamente à Finnegans Wake.

A primeira tentativa de leitura do Finnegans Wake é, quase sempre, desconcertante. Desde as primeiras palavras nos deparamos com processos construtivos inusitados e, aparentemente, ininteligíveis. Podemos reconhecer fragmentos lexicais e sintáticos da linguagem “normal”, mas que parecem ter vivenciado literalmente uma explosão. Se associarmos isso à fórmula de Einstein E=mc2, podemos levantar uma primeira hipótese de que a escrita de Joyce passa por um processo de desagregação “atômica” que poderia levar a um caos do fora de sentido, Porém, esses fragmentos são reorganizados pela sua pena, multiplicando exponencialmente as possibilidades de sentido contidos na língua de origem. Segundo as palavras de Augusto e Haroldo de Campos, temos no Finnegans Wake uma “literatura do significante”, que rompeu radicalmente com a “era da representação”, para instaurar a “era da textualidade”, “…não é a história que cede o primeiro lugar à palavra, mas a palavra que, ao irromper em primeiro plano, configura a personagem e a ação devolvendo a história”.

Processo análogo a esse é o que faz o compositor Arnold Schönberg com sua Klangfarbenmelodie (melodia de timbres), onde propõe um novo princípio organizador da instância melódica na música, não mais determinado por diferentes frequências, mas por aglomerados de frequências. É uma música que não pode ser “cantada” da mesma forma que uma história de Joyce não pode ser “contada”. Não existe mais um fio narrativo, mas um emaranhado de possíveis fios que multiplicam as significações possíveis.

Em Desenredo as referências lexicais, narrativas e de processos da escrita de Finnegans Wake são inúmeras. Vamos destacar duas. A mais simples e óbvia é o nome da personagem principal, Jó Joaquim, evocando James Joyce. A personagem feminina durante a narrativa é Livíria, Rivília, Irlívia, Vilíria em referência à Anna Livia Plurabelle do Finnegans Wake. Numa primeira tentativa de decodificação/associação podemos associar a essas quatro formas Livíria / Livia, lírio, pureza; Rivília /rio, curso d’água, riverrun; Irvília / Irlanda; Virília / vil e lírio, um oxímoro.

Se analisarmos como Rosa opera com esse nome em sua narrativa, já temos uma primeira chave de leitura, pois Joyce se utiliza intensamente desse recurso de escrita.  Mas vamos deixar por um instante a filologia e voltarmos à psicanálise. Quais seriam as implicações dessa escrita? Ao ousar sair do reino do sentido e seu gozo respectivo que reduz a potencialidade de outros gozos, Joyce liberta a literatura do sentido. Segundo Márcio Peter “se, para Freud a literatura era apenas um tipo de sonho, ‘Finnegan’s Wake’ é o despertar do sonho do sentido. … Assim, Joyce, como um psicanalista, fez de seu texto um produtor de sintomas no leitor, fazendo emergir a verdade singular de cada sujeito, seu próprio sintoma.”

Se, seguindo o conselho de Lacan, como psicanalistas não devemos retroceder diante da psicose, como leitores, não devemos retroceder diante do texto joyceano. Nesse intento, desvendar a obra de Guimarães Rosa, também difícil, mas mais acessível para nós, pode ser de grande ajuda para desenredarmos a leitura de Joyce.

Amigos somos. Nonada. O sem sentido não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.

 


Bibliografia
FREUD, SIGMUND. https://www.ufrgs.br/psicoeduc/chasqueweb/psicanalise/freud-perda-realidade-neurose-psicose.htm
LACAN, JACQUES. Abertura da secção clínica. Ornicar?, n.9, p.7-14, 1977.
LACAN, JACQUES. Le Seminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Éditions du Seuil, 2005.
NOVIS, NORA. Tutaméia : engenho e arte. São Paulo, Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
ROSA, JOÃO GUIMARÃES. Tutaméia (Terceiras estórias). Rio de Janeiro, Novava Fronteira, 9ª ed., 2009.
ROSA, JOÃO GUIMARÃES. Grande Sertão: veredas. São Paulo, Companhia das Letras, 2019.
SOUZA LEITE, MÁRCIO PETER. A psicose como paradigma da psicanálise. In http://marciopeter.com/links2/especial/livro_ouro.html
WEBERN
WITTGENSTEIN, LUDWIG. Tractatus Logico-Phiilosophicus. Alemanha, Surkamp Verlag, 1984.