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PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA: SOBRE A LÓGICA DO TRATAMENTO MEDICAMENTOSO

Eliane Costa Dias*

Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. (Lacan, 1953)

Imagem: Instagram @ surrealism. World by Kevin champeny

Imagem: Instagram @ surrealism. World by Kevin champeny

Esta afirmação de Lacan, em seu famoso “Discurso de Roma”[i], tornou-se uma espécie de palavra de ordem nos últimos tempos, mas nem por isso, menos inquietante ou desafiadora. O que significa estar à altura da subjetividade de uma época marcada pelo ápice de um discurso que reduz tudo, ou seja, qualquer existência, a relações de produção e consumo?

A psicanálise tem a dizer, com Freud, que o mal-estar é inerente à condição do humano como ser-de-cultura. E, com Lacan, sabemos que o vazio estrutural, aberto pela entrada no campo da fala e da linguagem, funda o real inexorável da “não-relação sexual”, determinando que para todo ser falante, o impossível da completude e da complementariedade só possa ser imperfeitamente tamponado e estabilizado pela produção de sintoma. Como nos diz Miller[ii], todo ser falante chega ao consultório do psicanalista enlaçado a seu a parceiro-sintoma e também nos alerta que as manifestações sintomáticas e as parcerias mudam, na medida em que o Outro da cultura muda.

A ideia de abordar esse tema – a lógica do tratamento medicamentoso na interface entre Psicanálise e Psiquiatria – surgiu de uma inquietação na clínica.

Constatamos pessoas chegando aos consultórios de psicanálise cada vez mais medicadas, muitas vezes em uso de variados psicofármacos, num leque de oferta que tem se modificado e ampliado rapidamente.

Uma medicalização do mal-estar que se dissemina indiscriminadamente em todas as faixas etárias, em diferentes classes sociais, como resposta ao menor sinal de angústia, e ultrapassa o campo da psiquiatria e da saúde mental, com psicofármacos sendo prescritos por diversas especialidades médicas e, até mesmo, por profissionais de odontologia.

Se a psicanálise visa levar um sujeito a se implicar e saber-fazer com seu sintoma, qual o lugar e o manejo desse parceiro-medicamento na singularidade de cada tratamento analítico e nos discursos e práticas que circulam no Outro social? Qual a relação da psicanálise com a medicação?

Em 2002, Éric Laurent já nos lançava uma provocação: “Como engolir a pílula no interior do discurso da psicanálise?” E advertia: Estamos, hoje, mergulhados no medicamento. Ele é onipresente em nosso campo. Transtorna a clínica. Define ideais de eficácia, transforma as instituições médicas, triunfa sobre a tradição e os significantes-mestres. Ele é objeto de demandas neuróticas, de exigências psicóticas e de usos perversos. É objeto de perseguição e de rejeição. Ele se instala, expande-se, está especialmente bem, como em casa dele, em nosso campo. Ele é nosso mestre?[iii]

Pensamos que para nos posicionarmos em relação a esse parceiro-medicamento, nos cabe precisar qual a lógica com que a psiquiatria vem manejando o tratamento medicamentoso.

Numa sequência de três aulas, realizadas em 13, 20 e 27 de outubro, o programa desenvolvido pela psiquiatra e psicanalista Emanuelle Garmes abordou os seguintes pontos fundamentais: 1)Paradigmas que fundamentam a indicação de tratamento medicamentoso hoje; 2) Classes de psicofármacos utilizados na atualidade: histórico, critérios de indicação, efeitos colaterais, critérios de remissão; 3) O futuro da psicofarmacologia: pesquisas e tendências; 4) Psicanálise e psicofarmacologia: qual a interlocução?

Numa abordagem precisa e consistente e ao mesmo tempo crítica, Emanuelle destaca que a produção no campo das neurociências segue mobilizada pelo ideal de controle e de anestesia do sofrimento e de ampliação do “potencial” de cada indivíduo. Neste cenário, a tendência é de alargamento do uso dos psicofármacos, inclusive para além das situações de doença mental.

Em 1966, na conferência “O lugar da psicanálise na medicina”[iv], Lacan observa que o mundo científico deposita nas mãos do médico “o número infinito daquilo que é capaz de produzir em termos de agentes terapêuticos novos, químicos ou biológicos”. A partir daí, enquanto “agente distribuidor”, ele teria que se haver com as demandas engendradas por essa oferta.

Os psicofármacos são desenvolvidos a partir do conhecimento do funcionamento do organismo, especialmente da fisiologia e da bioquímica do cérebro. No entanto, constatamos, uma vez mais, como o campo linguageiro no humano ultrapassa a anatomia. O fato fisiológico converte-se em fato discursivo. A aliança entre o discurso da ciência e o discurso capitalista da indústria farmacêutica, por sua vez, forja novos fatos discursivos (novos diagnósticos e nova lógica de raciocínio clínico); molda corpos e subjetividades; determina e subverte a ética do cuidado.

Na época atual, o parceiro-medicamento torna-se inevitável e, em muitos casos, necessário. Ao psicanalista não cabe defesa ou resistência ao tratamento medicamentoso, mas a habilidade de inseri-lo no dispositivo de fala de um tratamento analítico, visando que ele possa ser subjetivado e que o sujeito possa estabelecer com o medicamento um uso mediado pela palavra, pela lógica do não-todo e pela ética do sintoma.

* Psicanalista, membro da EBP/AMP, associada e docente da CLIPP.

 


[i] Lacan, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 322.
[ii] Miller, J-A. A teoria do parceiro. In: Escola Bras. de Psicanálise (org..). Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p.  153-207.
[iii] Laurent, É. Como engolir a pílula? Revista Clique. Palavras e pílulas. Psicanálise na era dos medicamentos, nº 01, 2002, p. 25.
[iv] Lacan, J. O lugar da psicanálise na medicina (1966). Opção Lacaniana. São Paulo: Eólia. Dezembro 2001, n.32. p. 8-14.