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“TODOS DELIRAMOS” FORCLUSÃO GENERALIZADA

Maria Bernadette Soares de Sant´AnaPitteri (EBP/AMP)

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O esgarçamento do Nome-do-Pai, a queda da Metáfora Paterna, arranca de Lacan: “Todo mundo é louco, isto é, delirante”i, o que estende a loucura a todos os seres falantes; se alguém é falante, está localizado na “loucura generalizada”. Ao dizer que todo mundo é louco, Lacan não está falando em psicose, uma das estruturas mentais (neurose, psicose, perversão) desenvolvida a partir da doutrina freudiana, que traz o inconsciente suposto por suas formações: sonho, lapso, chiste, ato falho e sintomaii iii.

Lacan, no Seminário 3, As Psicoses, trabalha de modo surpreendentemente claro as estruturas freudianas, reanalisando as “Memórias de um Doente dos Nervos” trabalhado por Freud em o “Caso Schreber”. Enquanto Freud dizia que a Psicanálise não se aplicava à psicose, Lacan afirma que “não devemos recuar diante da psicose”. Ou seja, se o modelo de tratamento analítico em Freud é a neurose, em Lacan é a psicose, e as consequências em função desta escolha não são poucas. Mas não é de psicose que se trata na forclusão generalizada.

O analista não pode ignorar as mudanças na civilização. Freud enfrentava em sua época a intolerância vitoriana face à sexualidade; no século XXI, podemos falar de um fenômeno que revira totalmente tal questão: o que antes era proibido é, não apenas permitido, mas há até mesmo um forçamento.

Novos tempos exigem que se explore a dimensão do real escancarado com a queda da metáfora paterna e consequente generalização da loucura.

Esse estado de coisas já aparece teorizado no aforisma 125 da Gaia Ciência, quando Nietzsche fala da “Morte de Deus”.

Deus foi assassinado pelo mundo cristão que o criou como garantidor de uma verdade, expressão do racional que, na tentativa de encontrar um finalismo, de provar tudo, buscar a verdade a qualquer custo (o que Nietzsche dirá em determinado momento que é indecente!), ao não conseguir provar Deus, mata-o, isto é, abandona a crença n´Ele.

O finalismo, a ordenação, o “sentido” do mundo, são criações humanas, necessárias para manter vivo um ser que não tem garras e dentes afiados para se defender. Ao tirar o véu da verdade, da grande encobridora do vazio, o homem pode iniciar outra criação, um ultrapassamento radical. Perigoso? Sim, muito. Mas “viver é perigoso”, já dizia nosso velho e amado Guimarães.

Nietzsche descreve as consequências da morte de Deus: a perda de todo o referencial moral e teórico com o qual o mundo ocidental vivia. A sustentação da moral e da verdade, e, portanto, da linguagem, provinha da crença no Deus cristão. Algo assim como o nó borromeano no primeiro ensino de Lacan, onde a sustentação acontece na medida em que os três círculos se enlaçam, sendo que a perda de um deles implica a perda dos outros, pois “nada se sustenta por si só” iv.

Perdida a garantia proveniente do Deus cristão, a desvalorização desta crença pode destruir a humanidade, tanto mais apegada à vida, quanto mais crente em seus valores.

Anos depois, Nietzsche se pergunta “Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito?v. Encarando o vazio, arrancados os véus da verdade, continuarão os homens na existência? Superar o Deus cristão equivale a superar um mundo humano, criado pela própria humanidade. Por não ser mais na perspectiva desse pai, torna-se necessário ultrapassar esse homem que procede de Deus, ir além-do-homem, tornar-se criador de seus próprios valores. Ultrapassar o limite de verdade que já não satisfaz, pois não mais se acredita que possa abarcar a totalidade, tornar-se louco, isto é, não estar mais guiado pela perspectiva do Pai.

Essa metáfora que tomamos de Nietzsche ilustra aquilo que Lacan repete: o significante nada significa, quem dá significado é o sujeito, ou seja, a partir da fantasia fundamental o sujeito recorta o mundo e lhe dá significação.

Miller no curso “Todo mundo é louco” diz que a posição do analista não é apenas lidar com o significante e interpretar, mas, como diria Pascal, com o “esprit de finesse”, ou seja, visar de uma só vez e verificar que o sujeito está ligado ao gozo, pois com os sintomas ele fabrica os meios para sustentar seu gozo, para tratar o real, esse impossível de suportar que ficava tamponado pelo Nome-do-Pai ou Metáfora Paterna, ou ainda como queria Nietzsche, o Deus cristão.

i LACAN, J. “Transferência para Saint Denis?” Correio EBP n. 65, São Paulo, 31-32.

ii MILLER, J.-A. Todo mundo é louco. Curso da Orientação Lacaniana, 2007/2008.

iii As quatro primeiras são emergências surpresivas, enquanto o sintoma se repete, insiste. Nos tempos áureos da Psicanálise, a decifração enquanto elemento surpresivo solucionava o sintoma, mas ocorre que a decifração freudiana foi apropriada pela civilização e para além desta, o sintoma insiste, persiste e só parece abalado, na surpresa.

iv LACAN, J. O Saber do Psicanalista, p. 63. Trad. de Luiz de S.D. Forbes, B.F.B.

v NIETZSCHE, F. Ecce Homo, p. 366, in “Os Pensadores – Nietzsche”, op. Cit.