A interpretação como um Acontecimento vem da Posição Feminina
Por Keren Ben-Hagai
“O analista também deve pagar”, disse Lacan em A direção do tratamento e os princípios de seu poder [1]. Pague com suas palavras. Pague com a própria pele. Com sua persona, quando ele se presta ao analisando como espinha dorsal da transferência. Ele deve pagar com o que é essencial ao seu julgamento mais íntimo. Pague com seu ser. Isso foi escrito em 1958, numa época em que Lacan considerava a ordem simbólica como eixo central na direção do tratamento. Foi antes de ele começar a colocar todo o peso no real. O que retorna como diretriz é o significante “pagar”, e isso pode ser logicamente entendido como uma subtração do ser do analista. A subtração é em relação ao que existe.
Cerca de uma década depois, em seu 15º seminário, O ato psicanalítico [2], Lacan propôs: “é no limite da incurabilidade do sujeito que o analista se oferece para reproduzir aquilo de que se libertou. Nessa destituição subjetiva onde ele é moderado, onde se subtrai de toda paixão, de todo afeto, além, portanto, do medo e da piedade, a ponto de ele mesmo produzir essa incurabilidade ”. Nesse texto, proferido em 1967-1968, o ato do analista sustenta mais uma camada. É um período em que Lacan se deparou com os limites do significante e se deu conta de que nem tudo em tratamento se encontra na dialética do significante. Há uma área que permanece parcialmente abandonada pelas palavras.
Em O aturdito [3] Lacan afirma que o que é dito não o é sem o ato de dizer, mas enfatiza que o ato não se une ao que é dito, mas existe fora do que é dito. Na maneira como o analista diz, ou mais precisamente no momento do ato, dissipa-se a hiância entre quem diz e o que diz. Pode-se afirmar que esta é a dissipação do sujeito. O que aquilo está dizendo e de que lugar?
O que se destaca na posição do analista tal como apresentada no 15º seminário é justamente o ato analítico como produtor de algo onde não existe. O que significa tornar-se “um pedaço de Real” [7] para o analisando? Parece que o que procuro para ser preciso é a posição do analista no momento do ato – uma posição que carrega a posição feminina e o sinthoma.
O argumento de Éric Laurent, Interpretação da Verdade ao Acontecimento [4], nos direciona ao Seminário 23 [5] – para o furo. O furo que está embrulhado e coberto com fantasmas, amores, decepções e todo tipo de bênçãos. Lá, Laurent coloca a frase “Estava escrito” – registrada no corpo. Pode-se dizer que esta é a escavação inicial no corpo real da qual nada sabemos e não podemos dizer; podemos apenas dizer suas bordas. Uma das maneiras que Lacan encontrou para nomear o furo é o que ele chamou de Sinthoma – a singularidade muito real que delineamos na análise e que não se encaixa em nenhuma categoria conhecida. No meu melhor entendimento, o uso do significante “furo” já é uma indicação do produto do delineamento do vazio.
O nó aparentemente óbvio entre o sinthoma e a posição feminina dá, a meu ver, um certo grau de construção da posição do analista no momento do ato. Não em substituição da investigação histórica, mas ao lado dela. No Seminário 23 [5], Lacan vinculou a posição feminina ao sinthoma, formulando a posição feminina como aquela que mantém um não-todo em relação ao todo (mais pas ça – mas não isso). Por outro lado, o sinthoma está fora do todo, não permitindo tudo e encarnando a impossibilidade (tout mais pas ça – tudo menos isso).
A sua formulação enquanto tal, nos possibilita dizer que é o sinthoma que permite um certo delineamento do gozo feminino, o mesmo formulado no Seminário 20 , mais ainda [6]. Mas é a posição feminina como tal que possibilita algum saber sobre o que não pode ser dito. É a posição feminina, que está fora da cena, fora do sentido, que permite a formação do sinthoma e, portanto, tem uma conexão direta com a posição do analista.
A inferência lógica permite que dois pontos sejam assumidos: 1. o analista interpreta a partir da posição feminina. E 2. O analista interpreta usando seu sinthoma. Os dois pontos estão interligados. Ambos respondem à mesma lógica – não toda.
A possibilidade de assumir a posição feminina é a possibilidade de o analista encontrar e carregar o seu próprio vazio com menos pavor e sofrimento. Isso terá um efeito profundo na maneira como ele se posicionará como analista em sua prática. Como escreveu Miller: “O analista pode se tornar um sinthoma para seu analisando”. Para isso ele deve “saber jogar no acontecimento de corpo ou no semblante do traumatismo”. [7]
A formação do analista deve ir ao ponto de delimitar essa parte de seu gozo, para que ele possa enfrentar o encontro analítico a partir da posição feminina. Uma mulher pode ser uma a uma, apoiando-se no aforismo “há Um” (“Il ya de l’Un”), e minha leitura reforça o pensamento de que certo aspecto no trabalho do analista, em sua presença, em sua interpretação, também pode ser dito um a um, no caminho do sinthoma. Permitindo “ir além do pai”.