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A propaganda e a manipulação das massas

Um recorte sobre a primeira parte do documentário “O século do Ego” – Máquinas da Felicidade, do cineasta Adam Curtis.

José Wilson Ramos Braga Jr. (CLIPP)

IMAGEM: cinegnose.blogspot.com

No início da pandemia, enquanto eu estava em numa fase de isolamento muito mais restritiva que nos dias de hoje, deparei-me com essa obra do cineasta britânico Adam Curtis intitulada, em inglês, <The Century of the self – um documentário televisivo semanal lançado pela BBC em 2002. O tema principal girava em torno da questão de “como aqueles que estão no poder usaram as teorias de Freud na tentativa de controlar a perigosa multidão, em uma era de democracia de massa”.i Freud acabara de apresentar uma nova teoria sobre a natureza humana: forças sexuais primitivas e agressivas escondidas na mente humana que, se não fossem controladas, poderiam levar os indivíduos e a sociedade ao caos e à destruição. O mestre que se utilizou dessas ideias para manipular as massas e as apresentou às corporações e aos políticos americanos foi nada menos que o sobrinho de Freud, o americano-austríaco Edward Bernays. De maneira exemplar, a aliança entre o discurso do mestre e o discurso do capitalismo se estabelecem.

Assim, muitos empresários americanos aprenderam com Bernays como poderiam fazer com que as pessoas passassem a querer produtos – dos quais não necessariamente precisavam – os conectando a seus desejos inconscientes. Com ele se consolidaria uma nova ideia política de como controlar as massas, isto é, satisfazer os desejos inconscientes das pessoas tornando-as felizes e, com isso, dóceis. Deu-se, portanto, o início do ‘eu-que-tudo-consome’ e que hoje domina nosso mundo. Lacan, no Seminário 17 (1991, p. 188-189), iria vincular esses objetos ao discurso do capitalismo e os denominaria de latusas: “E quanto aos pequenos objetos a que vocês vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar seu desejo, na medida em que é a ciência agora que o governa, pensem neles como latusas”.ii

Edward Bernays e a Guerra

IMAGEM: militaryhistorynow

As ideias de Freud de que todos os seres humanos possuíam uma parte oculta de suas mentes onde predominavam, reprimidos, os impulsos instintivos perigosos e as poderosas forças sexuais e agressivas, impactaram ainda mais o Império Austro-Húngaro. Com o avanço da 1ª Guerra Mundial e seus horrores, Freud evidenciou suas descobertas sobre a agressividade do comportamento humano que seriam o reflexo dessas forças primitivas. Ninguém parecia saber como detê-las.

Bernays havia emigrado para os Estados Unidos (EUA) 20 anos antes e, durante a 1ª Guerra Mundial, foi contratado pelo governo do presidente Woodrow Wilson para promover na imprensa os objetivos da entrada dos EUA na guerra: levar a democracia para toda a Europa tornando o mundo mais seguro. Esse foi o grande slogan apresentado na Conferência de Paz em Paris (1919). Wilson foi recebido como um “libertador do povo”, como quem criaria um mundo no qual o indivíduo seria livre. Um de seus feitos foi também a criação da frase “I want you for U.S. Army” (Quero você para o exército americano)iii ilustrada por James Montgomery Flagg no famoso cartaz acima.

Bernays ficou impressionado com a boa repercussão da narrativa criada para o presidente Wilson e começou a se questionar se seria possível fazer o mesmo tipo de persuasão em massa, mas em tempos de paz. Retornou aos EUA e, como a palavra Propaganda estava negativamente ligada aos nazistas alemães, ele a substituiu pelo termo Relações Públicas, já bastante bem aceito. Como a América tinha se tornado uma sociedade industrial de massa, Bernays estava determinado a encontrar uma maneira de gerenciar e alterar a forma como essas multidões pensavam e sentiam. Ficou fascinado com a descoberta de Freud das forças irracionais ocultas nos seres humanos e pensou em como poderia ganhar dinheiro com a manipulação do inconsciente.

Tochas da Liberdade e o ‘Real American Breakfast

IMAGEM: osegredodonegocio.wordpress.com

Com Freud, Bernays descobre que há muito mais coisas envolvidas na tomada de decisão do ser humano, não apenas entre os indivíduos, mas ainda mais importante entre os grupos. Uma de suas experiências foi persuadir mulheres a fumar. Naquela época, era tabu uma mulher fumar em público, somente as prostitutas o faziam. O presidente da American Tobacco Corporation pediu a Bernays para quebrar esse tabu. Um dos psicanalistas da época, AA Brill, disse a ele que os cigarros eram um símbolo do pênis e da força sexual masculina; e, conectando o cigarro com a ideia de desafiar o poder masculino, as mulheres fumariam, pois, teriam seu próprio pênis. Assim, Bernays organizou um evento durante a parada no dia de Páscoa em Nova Iorque onde mulheres foram pagas para acender as tochas da liberdade, ao mesmo tempo que fotógrafos estariam lá para capturar esse momento da liberdade, de mulheres segurando suas tochas – agregam a emoção, a memória e uma frase racional. A partir daí, desse anúncio simbólico, a venda de cigarros para mulheres começou a crescer.

Um outro exemplo é como o típico café da manhã americano foi criado a partir do pedido de empresários para alavancar as vendas de bacon. Bernays fez uma pesquisa com cerca de 4.000 médicos com a pergunta se seria melhor um café da manhã mais leve (como era a ideia na época) ou mais robusto. O resultado das “autoridades científicas” foi de que o café mais robusto seria melhor para a saúde. As mensagens de marketing criadas por Bernays tendo como base essa “pesquisa científica” com os médicos foram amplamente divulgadas, o que gerou uma mudança de hábitos na população americana e, consequentemente, o aumento expressivo no consumo de bacon e nos lucros dos empresários.

Esses são alguns exemplos da estratégia de Bernays: colar à uma prática, uma representação simbólica, associar a um uso uma significação que vai legitimar seu novo uso. Por exemplo, o uso do cigarro pelas mulheres desloca-se da vulgaridade para o de reapropriação do falo masculino.

Da Cultura da Necessidade à Cultura dos desejo

IMAGEM: livetechupdates.com

Até aquele momento, os produtos eram vendidos às massas com base na necessidade e o objetivo dos anúncios era demonstrar as virtudes práticas do produto. As corporações identificaram o que seria necessário: mudar a América de uma cultura da necessidade para a cultura do desejo. “As pessoas devem ser treinadas para desejar, desejar coisas novas, antes mesmo que as antigas sejam consumidas. Os desejos do homem devem ofuscar suas necessidades”. Cada vez mais, o americano passa então de trabalhador para consumidor. Edward Bernays estava no centro dessa estratégia de mudança com a criação de técnicas de persuasão do consumidor em massa com as quais agora vivemos. “Em 1927, um jornalista americano escreveu: Uma mudança ocorreu em nossa democracia, chama-se consumismo. A primeira importância dos cidadãos americanos para seu país agora não é mais a de cidadão, mas a de consumidor”.

Governos Ameaçados: Engenharia do Consentimento

Após a descoberta de Freud, havia a ideia de que forças inconscientes e “instintos agressivos”, submersos na mente de indivíduos da sociedade moderna, poderiam explodir a qualquer momento produzindo uma multidão frenética que teria o poder de destruir até mesmo governos. Em consonância, o influente jornalista político Walter Lippmann argumentou que sendo os seres humanos movidos por forças irracionais inconscientes, seria necessária uma nova elite que pudesse administrar o rebanho desnorteado, deixando-o feliz e dócil por meio de técnicas psicológicas que controlariam os sentimentos inconscientes das massas, o que culminaria no controle social. Bernays adiciona como estratégia o que chama de engenharia do consentimento que consistia em estimular os desejos internos das pessoas para depois saciá-las com produtos de consumo. O consumismo se tornaria o motor central da vida americana, segundo articulou, em 1928, o presidente Hoover com anunciantes e consultores em relações públicas: “Vocês assumiram o trabalho de criar desejo e transformaram as pessoas em máquinas de felicidade em constante movimento. Máquinas que se tornaram a chave para o progresso econômico.”

Uma nova Democracia

Em 1939, Nova Iorque foi a sede da Feira Mundial cujo tema central foi o elo entre a democracia e os negócios americanos, tendo Edward Bernays como o principal conselheiro. Sua ideia era de fazer o casamento entre democracia e capitalismo, manipulando as pessoas para que pensassem que só poderiam ter uma real democracia numa sociedade capitalista. Na nova democracia os negócios responderiam aos desejos mais íntimos dos indivíduos da forma que nenhum político nunca poderia fazer. Os desejos das pessoas estariam no comando, de modo que se poderia obter o que se deseja delas.

A nova democracia seria um regime no qual uma minoria esclarecida, minoria inteligente deve modelar a opinião pública pelo bem a sociedade. Com a palavra, Edward Bernays: “A manipulação consciente e inteligente das ações e opiniões das massas é um elemento importante numa sociedade democrática Aqueles que manipulam esse mecanismo invisível da sociedade, constituem um governo invisível que é o verdadeiro poder no nosso país. Somos governados, nossos espíritos são formados, nossos gestos educados, nossas ideias sugeridas, em grande parte pelos homens que jamais ouvimos falar”.

O Estado e a Propaganda

Jacques-Alain Miller em um artigo publicado recentemente na revista francesa Marianneiv, “Mensagem antidiscriminação: quando o Estado pretende nos ensinar a tolerância” (tradução livre do original em francês), escreve sobre os métodos de propaganda do Estado. Miller nos chama atenção para Bernays, esse sobrinho de Freud, “o inventor da propaganda moderna, eufemismada sob o nome de relações públicas”, o qual irá “explorar em benefício da nova disciplina o que foi capaz de adquirir do saber de seu tio”.

E Miller adiciona: “Sim, o desejo pode ser manipulado a serviço do ato da compra. Sim, em uma campanha eleitoral, você pode mudar os votos bombardeando intensamente inverdades. Sim, pode-se aumentar as vendas de um produto por sugestão, divulgando-o em todo lugar. Exaltado pelo sucesso do marketing publicitário no nível do consumidor, você se permite entrar na esfera mais íntima das pessoas para reeducar e adulterar o desejo dentro da própria família. Que arrogância! Quanta intemperança! Que abjeção!”.

Quem é o Estado para saber mesmo tudo o que é o melhor para as pessoas?

i O Século do Ego – Ep.1 de 4 – Máquinas da Felicidade (LEGENDADO) acesso pelo endereço eletrônico: https://youtu.be/tHHVQy3Yd1w The Century of the Self – Part 1: “Happiness Machines” (Original Adam Curtis) acesso pelo endereço eletrônico: https://youtu.be/DnPmg0R1M04
ii LACAN, J. Seminário 17 O avesso da Psicanálise (1991, p. 188-189) iii BERNAYS – Comment manipuler l’opinion. Le Précepteur Charles Robin. Acesso pelo endereço eletrônico: https://youtu.be/UvkhFpb7M7Y
iv “Message anti-discriminations: quand l’État prétend nous enseigner la tolérance” Tribune – Par Jacques-Alain Miller – Publié le 03/06/2021 à 18:42. Acesso pelo endereço eletrônico https://www.marianne.net/agora/tribunes-libres/message-anti-discriminations-quand-letat-pretend-nous-enseigner-la-tolerance