Alergias respiratórias e qualidade de vida: Interface medicina e psicanálise
Relatora: Rosângela Carboni Castro
Integrantes: Sandra A. Grostein, Niraldo de Oliveira Santos, Carmen Silvia Cervelatti,Eliane A. Costa Dias
A opção em desenvolver este projeto de pesquisa em uma faculdade médica é conseqüência do trabalho interdisciplinar produtivo vivenciado nesta instituição. O diálogo existente entre o saber da Medicina e o da Psicanálise na prática do ambulatório do Serviço de Imunologia Clínica e Alergia do Hospital das Clínicas da FMUSP nos possibilitou tratar de questões importantes nas reuniões de equipe e nos convocou para estendê-lo à pesquisa.
Este trabalho busca situar-se na interface entre a medicina e a psicanálise. Considerando a importância deste diálogo no meio clínico e acadêmico, nosso trabalho visa ampliar a proximidade do profissional médico e do psicanalista. Nosso objetivo não é priorizar nem destacar a importância de um ou outro saber, mas marcar suas diferenças, para se estabelecer um lugar possível de diálogo e troca de conhecimento a respeito do paciente. Enquanto a medicina oferece uma terapêutica visando o bem-estar global, a psicanálise oferece uma escuta para o mal-estar inerente à condição humana.
Como veremos neste trabalho, a clínica é o ponto de intersecção entre a medicina e a psicanálise. No ambulatório do hospital, o paciente nos procura para tratar de um sofrimento, seja ele físico ou psíquico. A prática clínica nos demonstrou que este lugar oferecido ao sujeito para falar de seu sofrimento psíquico pode trazer como conseqüência uma melhora nesta condição.
As alergias respiratórias como a asma e a rinite acometem a maioria dos pacientes atendidos nos ambulatórios deste Serviço. O tratamento proposto pela Medicina visa uma melhora na qualidade de vida, aqui entendida “como a percepção do indivíduo de sua performance em quatro domínios básicos: atividade física e ocupacional; interação social; estado psicológico e bem-estar somático” (SILVA et al., 2000).
Durante as últimas décadas, um dos maiores desenvolvimentos no campo da saúde tem sido o reconhecimento da importância do ponto de vista do paciente em relação à sua doença, bem como a monitoração das medidas terapêuticas empregadas. De acordo com CICONELLI (1997), esta determinação já tem sido expressa na literatura médica há alguns anos, quando já se afirmava que a melhor medida de qualidade não é o quão freqüente um serviço médico é fornecido ao paciente, mas o quanto tais resultados obtidos se aproximam dos objetivos fundamentais de prolongar a vida, aliviar a dor, restaurar a função e prevenir a incapacidade.
O termo “qualidade de vida” atualmente faz parte do vocabulário comum dos profissionais da área de saúde. Para a medicina a melhora na qualidade de vida está vinculada ao sucesso terapêutico, isto é, à diminuição ou eliminação dos sintomas. Para a psicanálise este termo está implícito no tratamento, já que o sintoma que é tratado numa análise é diferente do sintoma tratado na clínica médica como veremos neste estudo.
As alergias respiratórias estão ligadas ao aparelho respiratório que exerce uma função vital ímpar para os pacientes. A asma e a rinite alérgica são doenças inflamatórias crônicas desencadeadas por alérgenos como ácaros, fungos, epitélios de animais, restos de insetos e polens e agravada por irritantes primários como fumaça de cigarro, poluição, clima, entre outros.
Tanto o tratamento da asma quanto o da rinite alérgica consiste em excluir os alérgenos e fatores irritantes. Tal controle ambiental previne as crises, mas muitas vezes limita a vida dos pacientes. Além do incômodo relacionado aos sintomas freqüentes da asma como tosse, dispnéia, sibilos e sensação de opressão torácica ou aos sintomas da rinite como prurido nasal intenso, espirros em salva, obstrução nasal e coriza, muitos pacientes se queixam do prejuízo na qualidade de vida ocasionados pela doença.
No atendimento oferecido a estes pacientes, algumas questões foram levantadas e nos motivaram a aprofundá-las em alguns pontos. O paciente demanda a cura para seu sofrimento. A Medicina escuta a demanda de cura e responde curando. O paciente demanda felicidade, busca um bem-estar perdido, pede para livrá-lo do sofrimento sem que tenha que fazer nada. O médico define o que vai trazer o bem-estar diante da demanda de acomodação.
Algo que nos chama a atenção para esta interlocução é que esta demanda pode não ser o que ele deseja, assim muitas vezes o desejo da equipe de proporcionar o bem ao paciente não corresponde ao desejo dele, pois ele está muito bem adaptado ao seu sintoma. A Psicanálise considera que há uma diferença entre demanda e desejo.
Em outras palavras, se o paciente busca o hospital para tratar sua rinite ou asma e melhorar assim sua qualidade de vida, porque alguns pacientes não aderem ao tratamento ou insistem em permanecer nesta condição de mal-estar? Diante desta questão, trazemos uma observação clínica de que em alguns casos, certos pacientes têm uma satisfação por estar nesta condição de doente e os ganhos secundários que esta condição lhe permite. Tal satisfação é da ordem das pulsões como veremos no percurso de Freud e Lacan.
Não pretendemos fazer um estudo da psicogênese das alergias, nem atribuir sintomas físicos a traumas psicológicos ou emocionais, mas poder acrescentar outra forma de entender o sintoma e a demanda de tratamento por meio do referencial psicanalítico de orientação lacaniana. Por se tratar da particularidade do sintoma de cada um, a psicanálise não vai tentar estabelecer através de um único caso uma verdade aplicada ao universal, mesmo porque não há uma psicanálise especializada para alérgicos, mas sim para o paciente que se encontra em sofrimento, independente de sua condição médica.
Não se trata de valorizar um saber ou outro, mas marcar a diferença exatamente porque é só através dela e de ocuparmos lugares diferentes que o diálogo é possível. Como pretendemos demonstrar neste trabalho, as noções de corpo, sintoma e cura são bem distintas entre a medicina e a psicanálise. A medicina tem o corpo físico como referência. Freud tem como referência o corpo psíquico. Segundo Moretto (2002), é exatamente por não tratarmos da mesma coisa que há um lugar para a psicanálise no hospital.
A psicanálise nasceu da medicina e hoje o médico abre um espaço na sua casa para o psicanalista porque apesar de trabalharmos no mesmo lugar com o mesmo paciente, temos diferentes referenciais teóricos. No modelo da ciência, o médico aplica seu método de observação e de saber previamente adquirido em relação a seu objeto de estudo, o processo se dá separadamente. Na Psicanálise o método é o próprio processo. O analista é participante e não aplicador do método.
Em relação à abordagem da medicina, faremos a descrição e comparação entre a qualidade de vida dos pacientes com diagnóstico de asma e rinite alérgica em tratamento ambulatorial, quanto aos aspectos físicos, emocionais e sociais, através de um questionário reconhecido na área de saúde. Quanto à abordagem psicanalítica o objetivo é destacar e ilustrar, a partir de um estudo de caso analisado através do referencial lacaniano, alguns aspectos individuais que podem contribuir para o surgimento ou agravamento da sintomatologia alérgica.
Segundo o dicionário AURÉLIO (1988), a interface é descrita como “superfície em que separa duas fases de um sistema”. Pretendemos através desta interface demarcar a importância de dados objetivos e estatísticos visando uma aplicação universal e, por outro lado, a importância da subjetividade visando demonstrar o trabalho do psicanalista no hospital. Partindo do pressuposto que a clínica seria o ponto comum entre a Medicina e a Psicanálise, o estudo de um caso clínico estaria exatamente na interface das duas ciências, porque está incluído num universo, mas traz algo do particular.
O questionário SF-36 nos pareceu ser um instrumento sensível para detectar tanto os aspectos físicos quanto os emocionais e sociais referidos pelos pacientes. Os resultados apresentados foram compatíveis com os da literatura mundial, demonstrando que a asma e a rinite alérgica estão associadas ao prejuízo na qualidade de vida dos pacientes estudados.
Confirmamos dados levantados na literatura quanto às limitações físicas e a saúde em geral dos pacientes com diagnóstico de asma, visto que tais pacientes tiveram escores menores nos domínios físicos comparados aos pacientes com rinite alérgica. Estes resultados estão correlacionados principalmente à maior gravidade da doença.
Os aspectos emocionais avaliados no questionário quanto à sua interferência no tipo e quantidade de trabalho, dificuldade de realização e conseqüências nas atividades da vida diária foram mais prejudicados no grupo rinite. Neste sentido, apesar da rinite alérgica não ser uma doença grave, causa sofrimento e prejuízo psíquico.
Obviamente, para atribuirmos um peso à rinite alérgica quanto ao prejuízo na qualidade de vida relacionado aos aspectos emocionais, seria necessário comparar tais pacientes com a população saudável. Neste sentido, nosso estudo ficou limitado apenas à comparação com outra patologia, contudo, nossos resultados poderão ser utilizados em futuros estudos que poderão ampliar tal objetivo.
Nos aspectos sociais, o prejuízo na integração em atividades sociais pode ser atribuído, tanto à maior limitação física dos pacientes asmáticos, como ao maior desânimo e empobrecimento psíquico dos pacientes com rinite alérgica. Assim, as limitações podem ser além de físicas, de ordem emocional.
Nossa preocupação desde o início era contemplar uma questão clínica quanto à demanda e o desejo do paciente. Se por um lado, há um prejuízo na qualidade de vida, por outro, o caso clínico demonstrou que há um ganho de gozo, em outras palavras, um aumento da pulsão de morte. Como a depressão foi descrita como ausência de desejo, atribuímos os sintomas depressivos e o isolamento da paciente a esta diminuição do desejo e aumento de pulsão de morte.
Além disso, para a paciente, a rinite alérgica tinha uma função, a protegia da relação com o mundo, funcionando como uma satisfação substitutiva, uma defesa contra o desejo. A rinite funcionava como um obstáculo, um meio para não fazer as coisas que desejava, como trabalhar, estudar e se relacionar. O sintoma, ao mesmo tempo aponta um sofrimento, mas tem uma função substitutiva, que aponta para a satisfação.
De acordo com este ponto de vista, não é necessário a remissão dos sintomas da rinite, mas seu deslocamento. A análise abriu um espaço para a paciente falar deste mal-estar, transformar em palavras o mal estar que não estava sendo dito, para não ter necessariamente que vivenciá-lo no corpo. Os significantes iniciais “isolamento” e “medo” foram dando espaço a outros como “experimentar” e “vivenciar”. Em outras palavras, a paciente conseguiu viver melhor, apesar da rinite.
Se o sintoma, por um lado trazia um mal-estar, somente no contato com ele é que foi possível para a paciente reescrever uma nova história, longe das identificações maternas de doença e sofrimento, abrindo na sua vida um espaço cada vez maior para o desejo e cada vez menor para o gozo. Apesar de não estarmos falando de um final de análise, a escuta das formações inconscientes permitiram à paciente a possibilidade de transformar a condição de quem é determinado para a de quem escolhe.
Se o produto de uma análise é a mudança de posição subjetiva e um “saber-fazer” com o próprio sintoma que faz com que o sujeito conduza sua vida de forma mais responsável e mais próxima ao seu desejo, seria esta a noção de qualidade de vida da Psicanálise?
Se por um lado, ainda existem alguns preconceitos em relação à Psicanálise, que por muito tempo se limitou às quatro paredes do consultório, por outro há uma certa dificuldade em trazer para o campo da ciência algo da ordem subjetiva. No entanto, se o psicanalista encontra um lugar para se situar na “casa” do médico é porque há no universal da Medicina um espaço para o particular da Psicanálise.