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A Clipp em Buenos Aires

Navalha na carne [1]

 

 

Maria do Carmo Dias Batista*

 

Gosta de se cortar, a moça. Diz sem pudor: gosto de ver o sangue escorrendosinto-me viva, me dá um prazer enorme, é o que mais me diverte… hoje fiz trinta cortes com estilete na coxa…lugar escondido: só eu posso ver os cortes,  tirar pedaços de pele, olhar o sangue…ô mãe, calma, isso é um gosto como outro qualquer, não quero morrer, nem matar. Gosto de fingir a morte, saber quanto agüento de dor, é uma delícia…

 

Outra, também no final da adolescência, fala: …nas baladas fazem fila para apagar o cigarro no meu braço, olha aqui as marcas…eu gosto, ofereço o braço, gosto de sentir dor, o corpo queimando, o cheiro…penso na morte toda hora…gosto da morte, de sangue, filmes violentos…quando canso das queimaduras, começo a me cortar com faca, bem fininho, olha aqui os cortes…posso viver ou morrer, isso nada tem a ver com o gosto pela morte, tanto faz….suicídio? De jeito nenhum, quero curtir a morte estando viva. 

 

Na cultura, tudo é mistura. [2]

A metáfora da mistura para compreensão da cultura é utilizada por Santaella [3] de forma hiper-metafórica, poderíamos dizer, uma vez que implica a ênfase na diferença e na hibridez, reduplicadas. Algo como a metáfora da metáfora. Vejamos: “Se a mistura é o espírito, como dizia Paul Valéry, e a cultura é a morada do espírito, então cultura é mistura. Embora se apresente como uma simples brincadeira silogística, aí está enunciada uma condição fundamental para se entender o que está acontecendo com a cultura nas sociedades pós-industriais, pós-modernas, sociedades globalizadas deste início do século”.

 

Sobre a hibridez cultural, Miller [4] indicou ser, precisamente, um dos principais componentes do espírito do tempo (Zeitgeist) presente, nossa visão de mundo atual.

 

Com a noção de hiper-modernidade ocorre o mesmo: reduplicações da modernidade, excesso (de), superação (da), grandeza, mega-modernidade. A idéia de expansão no espaço supera a linearidade temporal do conceito de pós-modernidade. Portanto, pensar em cultura e civilização hiper-modernas é pensar em espaço, no ciberespaço, mais precisamente. Ao trabalhar com seis eras culturais distintas: oral, escrita, impressa, de massas, das mídias e digital, a autora acima citada [5] situa o aparecimento da cibercultura na era da cultura de massas, era na qual “…a realidade da cultura começou a se impor até o ponto de sua inflação no espaço social atingir o nível que hoje vivenciamos, e que levou alguns a caracterizá-la sob a rubrica de pós-modernidade, outros, de desrealização do real, etc.” (ou hiper-modernidade)

 

A hiper-modernidade seria caracterizada pelo cruzamento das diferentes formas de cultura dentro de um mesmo espaço social. “…vivemos hoje um momento civilizatório especialmente complexo, tramado pelos fios diversos de formas de cultura distintas que se sincronizam (…) essa coexistência continuará ou as tecnologias propiciadoras da cibercultura absorverão todas essas formas de cultura para dentro de sua própria lógica? Alguns apostam que sim. Quanto a mim, tenho dúvidas. Ainda creio na vocação humana para a conservação do desdobramento e multiplicidade de suas conquistas e potenciais.” [6]

 

Internet transfigurou a relação tempo-espaço e a comunicação entre as pessoas. Cada um pode ser outro, inventar-se, fazer do objeto de seu fantasma um produto consumível em tempo real por milhões de outros, ganhar dinheiro com isso. Ao mesmo tempo, consumir, consumir-se, difundir-se, apresentar-se através da rede. Deixar-se tragar por ela, tornar-se dependente, desaparecer.

 

Exemplos como os sites de incentivo ao suicídio de adolescentes, rede internacional de pedofilia, neonazismo, apoio à guerra, ao assassinato premeditado, às lesões e mutilações voluntárias, convivem com aqueles religiosos, ou de defesa da vida, da liberdade, da sexualidade, da família. Há interatividade para qualquer área, de jogos infantis aos jogos de guerra, compras através de cartões de crédito, consumo participativo de práticas sexuais diversas com auxílio de web-cam. Nos anos 1950, a explosão da TV ao vivo viria a tornar-se precursora do fenômeno interativo, chegando ao ápice com o registro passo a passo do suicídio do artista multimídia Mishima, em Tóquio, transmitido ao vivo pela maior rede televisiva do Japão, em 1970.

 

Vejamos o que disse Lacanem 1972:

“…uma visão libidinal de nossas sociedades capitalistas tardias, ao falar da proliferação dos sintomas, dos tiques particulares e contingentes que dão corpo ao gozo, e que estão mais bem exemplificados pelos inúmeros aparelhos com os quais a tecnologia nos brinda todos os dias. Na perversão generalizada do capitalismo tardio, a própria transgressão é solicitada; somos bombardeados com aparelhos e formas sociais que não apenas nos permitem viver com nossas perversões, mas também conjuram diretamente novas perversões”.[7]

 

As previsões de Lacan se comprovam de maneira impressionante.

 

campo da clínica psicanalítica, no recenseamento social proporcionado pela escuta, está em ligação direta com as novas perversões conjuradas pela hiper-modernidade – os chamados novos sintomas: sintomas de corpo.

 

Cortar o corpo, queimá-lo, oferecê-lo para que outros jovens façam o mesmo, o vampirismo do prazer pelo sangue, são formas de tocar o corpo e de erotizá-lo, fazendo feridas, deformando-o –ninguém escapa ao domínio do monstruoso, dizia Bataille–, principalmente uma mulher, identificada pelo incompleto comum a ambos. Demonstrações do aumento hiper-moderno da pulsão de morte,  hipertrofia da pulsão e da libido pelas representações da morte, por seu teatro, seus atos preparatórios. Sem o morrer.

 

“…vejamos o exemplo das pessoas, geralmente mulheres, que sentem necessidade irresistível de se cortar com lâminas ou de se ferir de outras formas; trata-se de um paralelo exato da virtualização  de nosso ambiente: trata-se de uma tentativa desesperada de volta ao Real do corpo.(…) Uma afirmação da própria realidade. Longe de ser atitude suicida ou indicar desejo de auto-aniquilação, o corte é tentativa radical de dominar a realidade ou (…) de basear firmemente o eu na realidade do corpo contra a angústia insuportável de sentir-se inexistente.” [8]

 

A Escola na hiper-modernidade

Campo imantado da Escola guarda relação estreita com a transfiguração de nossa época. A Escola também se transfigura, deve mudar. Seguramente já o fez, pois os sintomas e fantasmas cibernéticos e seus efeitos chegaram até ela pela linguagem, pela via da clínica psicanalítica, antes de nossa racionalidade produzir teorias. Seu campo magnético, como definiu Lacan  o Campo freudiano, atrai as mudanças, as diferenças, as contradições. É o campo do inconsciente.

 

A psicanálise viverá sempre, penso.

 

Escola necessita de um saber novo a cada instante, em tempo real, para sobreviver. Novos funcionamentos. Saber-fazer com o passe e a garantia, com a psicanálise aplicada, com o recenseamento do Campo freudiano, nestes tempos hiper-modernos, é saber-mudar, ágil e rapidamente.

 

Separar corpo e mente, mente e cérebro, tecnologias e inconsciente, esquecendo a trilogia lacaniana real, simbólico e imaginário, em prol de um dualismo piegas, tornará aEscola obsoleta, anacrônica e lenta, pesada. A primeira das tecnologias na origem do humano como ser simbólico, como ser de linguagem, foi a tecnologia da fala,[9]que está em nosso próprio corpo. A fala não é natural e arranca o ser falante da natureza. As tecnologias subseqüentes deram continuidade: também estão ligadas ao corpo, ao gozo e ao inorgânico da pulsão de morte.

 

O um a um e seu magnetismo devem produzir o agir ágil [10], numa Escola pronta para a contingência e o impossível. Pronta para acompanhar a evolução do humano dentro do inumano (a tecnologia como extensão do corpo) e do inorgânico no humano (o aumento da pulsão de morte).Temos as ferramentas deixadas pelo ensino de Lacana ausência de padrões e regras técnicas, os princípios norteadores da invenção processada em cada análise, uma análise diferente para cada sujeito, as sessões curtas, o corte produtor de desejo de saber e sua incisão no tempo e no espaço, a direção do tratamento que visa o final da análise, o desejo do analista buscando levar a análise “ao encontro da diferença absoluta… através de um amor sem limites, porque fora dos limites da lei”. [11]

 

10/03/2005

 

 

Notas

* Miembro de la Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) – San Pablo y de la Asociación Mundial de Psicoanálisis (AMP).

 

1 Nome de conhecida peça teatral de Plínio Marcos.

2 Santaella, Lúcia, Culturas e artes do pós-humano, São Paulo, Paulus, 2003.

3 Idem, p. 30

4 Miller, J.-A., “Une”, Le Monde, Paris, novembro, 2002.

5 Santaella, Op.cit., p. 78.

6 Idem, ibidem, p. 79.

7 Lacan, J.,  O Seminário – livro 20 – Mais, ainda, Rio de Janeiro, Zahar, 1982.

8 Zizek, Slavoj, Bem-vindo ao deserto do RealSão Paulo, Boitempo Editorial, 2003.

9 Santaella. Op.cit., p. 244.

10 Batista, M.C. Dias, “Os Trinta e Nove Degraus”, Lettre Mensuelle, N° 231, Paris, ECF, 2004, p. 33.

11 Lacan, Jacques.O Seminário  livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ, Zahar,1979.