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A função do tóxico em um caso de psicose: um ponto de “basta”

Marizilda Paulino

 

CARBONE, R. & ISRAILEVICH, C. “La función del tóxico en un caso de psicosis: un punto de ‘Basta’”, in Pharmacon 11, El lazo social intoxicado, pp.169-172.

A pergunta pelo modo como o sujeito inicia o consumo de substâncias, e em que conjuntura, é fundamental para nos orientar em relação à função do tóxico na economia psíquica do paciente.

Neste artigo apresentamos um caso de psicose e nos perguntamos se a substância vem para deslocalizar o gozo ou, pelo contrário, é uma tentativa de localizá-lo; ou seja, se o tóxico favorece a irrupção do gozo ou é justamente o recurso que vem a restringi-lo.

Apresentaremos o modo particular  de um sujeito fazer com o gozo que o invade e como o tóxico se apresenta como uma solução (fracassada para isso).

Início do consumo

Trata-se de um homem sexagenário que se apresenta dizendo que é “cocainômaco” e que consome há mais de 30 anos, com interrupções prolongadas.

Não sabe pontuar quando iniciou o consumo, mas situa uma diferença na quantidade de ingestão. Nos primeiros anos consumia junto com sua mulher e depois sozinho. A partir desse fato fala em um consumo “forte”. “Com minha mulher consumíamos juntos e quando ela parava, eu parava também; não havia exagero, logo ela largou.”

Nesse primeiro momento, quando consumiam juntos, havia um consumo regulado. Sua mulher ao parar, pondo um limite ao próprio consumo, permitia a ele colocar-se uma trave. Quando ela deixa de consumir, ele não consegue limitar seu consumo. Seu relato mostra como ele perde o parâmetro quando ela não mais o coloca e como responde levando ao ato a falta de limite. “Falo para minha mulher que havia comprado cocaína, ela se zanga e me diz para ir consumir no meu quarto (dormem em quartos separados), eu começo a dizer que queria um abraço, mas ela se esquivou… então fui ao meu quarto e comecei a consumir… eu entendi isso como um: consuma tudo.”

Com essa mudança onde ele começa a consumir sozinho, introduz-se um “ritual de consumo”, que permanecerá intato durante décadas: o fará sobre uma foto de sua mulher nua. Diz: “coloco cocaína em suas partes femininas, faço dois círculos e um triângulo”.

O consumo durante o tratamento

Na volta de uns dias de férias a sós com sua mulher, depois de dois anos sem fazê-lo, surge-lhe “um impulso” de consumir cocaína.

É preciso falar que voltou das férias em estado maníaco: não parava de fazer coisas, estava verborrágico, dava ordens no trabalho que perturbava todo mundo, mobilizava a família. As demandas sexuais à sua mulher eram contínuas. Além disso, o paciente não tomava medicação antipsicótica e negava-se, nesse momento, a ir ao psiquiatra, pois dizia que se sentia “bárbaro e com energia para trabalhar”. Aliado a isso, começa a ter dificuldade para ejacular nas relações sexuais com sua mulher, a masturbação já não o satisfaz, e os filmes eróticos que usava já não lhe servem para esse fim.

O paciente consome durante quatro noites. Não deixa de vir às sessões e repete sempre uma queixa em relação às suas “carências sexuais” e “libido exacerbada”. Fala do “erotismo         “ que sua mulher lhe desperta só ao vê-la. Diz: “eu todo o tempo no cacete com ela… veja o que produz num homem”.

Quase um ano depois, regressando novamente de férias com sua mulher, há novos impulsos para consumir cocaína e apresenta um reiterado estado maníaco. Ele entende esse seu estado como uma reação de “bronca” para com sua mulher pelas “carências sexuais” a que ela o “submete”. Diz: “Em minha casa de lá não sou o mesmo que aqui.  Acho que é algo de rejeição à minha sexualidade (a rejeição que localiza em sua mulher). Fico derrotado, prostrado diante dela… Aqui tenho como estar comigo e deixá-la em paz… mas lá quero mais sexo.” Acrescenta: “Ela não consegue entender que alguém tem uma atração fatal”.

A analista tentará um manejo para produzir um corte, uma desvinculação entre a “atração” e o “fatal”, que tem um certo efeito de apaziguamento nas queixas e demandas dirigidas à esposa. Finalmente, umas semanas mais tarde consome e, depois de estar fora de casa dois dias, o encontram em um hotel. Devido ao seu estado físico é internado em uma clínica.

Função do tóxico: um “basta”

Em sua “escapada” para o hotel, pode pensar o consumo como um modo pelo qual o paciente tenta pôr um ponto de capitonê, fazer uma ancoragem para deter o movimento, de outro modo interminável.

Neste caso o tóxico não é o que produz o excesso, e  vem justamente para restringir o gozo que o invade, mas isso também falha. Isso nos confronta com o arriscado do caso e dos tratamentos pela via do real. O paciente relata esse momento, a impulsividade, a mania e a excitação em seu corpo: “Havia conseguido muita cocaína e não sei se a intenção era a do suicídio, mas tudo levava para fazê-lo: nitratos, Viagra e cocaína. Tudo era uma festa inesquecível, era desprender-me de minha vida. Morrer nesse momento era glorioso, não era triste, nem angustiante. Era um ‘basta’, mas um ‘basta’ alegre. Era: vou me divertir no hotel. Uma festa autoerótica”.

Das duas modalidades do retorno do gozo na psicose: a que focaliza o retorno do gozo em um Outro perseguidor ou que situa esse retorno no próprio corpo, podemos concluir que este último é o que acontece nesse caso. O paciente descreve uma sequência onde a “erotização” que procede de sua mulher traz como resultado uma excitação “exacerbada” em seu corpo. Fala desse modo: “A. emana algo especial” e, como efeito, “me desperta uma erotização tremenda”.

Entendemos o que aconteceu da seguinte maneira: primeiro se produziria a irrupção do gozo no corpo e, a posteriori, o sentido que ele lhe outorga e que enlaça com a “erotização” que sua mulher gera. Isso já uma tentativa de localizar o gozo.

Convém esclarecer que o sexo para esse paciente não é problemático fora dessas circunstâncias. A quebra da situação surge quando sua mulher, diante das demandas incessantes de sexo, finalmente lhe põe um limite. Limite que ele vive como uma “rejeição de sua sexualidade” e um momento em que aquilo que o sustentou até então se perde, respondendo impulsivamente com o recurso à substância tóxica. Ele descreve esse instante dessa maneira: “Diante de uma negativa dela, sinto-me deslocado, desvalido, aparece uma bronca e começo a pensar em cocaína”.

Se bem que por momentos o gozo irrompe violentamente deixando o paciente sem barreiras diante do gozo, há também instâncias de onde responde com ferramentas distintas do tóxico para frear a investida do mesmo. Referimo-nos ao que ele nomeia como seus “Diques de contenção”. Entre esses “diques” encontram-se: sua masturbação habitual, a relação com sua mulher e sua análise. Em relação à análise dirá: “A análise serve para eu detectar estados de ânimo, manias, depressão, broncas… nas férias tenho medo de deixar meu suporte da análise”. E sobre a frequência do tratamento de três vezes por semana, dirá: “Continuarei vindo três vezes por semana… preciso da análise para continuar com minha libido normalizada até a nova sessão”.

Recursos que, diferente do tóxico (que resulta em uma solução que falha) lhe permite estabelecer certo limite à irrupção do gozo.

Tradução (livre) feita por Marizilda Paulino. Para uso exclusivo da Seção Epistêmica da CLIPP, Nov.. 2010