Salvador Dalí, Máxima velocidad de la Madonna de Rafael (1954) – Museo Reina Sofia

Niraldo de Oliveira Santos(CLIPP/EBP/AMP)

“Pode realmente um analista fazer um amor dar certo? Pois de minha parte, que estou longe de ter nascido ontem, devo dizer-lhes que isso é um desafio”[1].

Já no início do Seminário 19: …ou pior, Lacan[2] adverte que os psicanalistas não deveriam se arvorar em assegurar a felicidade conjugal e muito menos em ocupar o lugar de protetores dos casais. Quando isso acontece é devido ao desconhecimento de que não existe a relação sexual. Em contrapartida, ele nos incita a estudar as consequências que a inexistência da relação sexual tem sobre o que ele chama de estilo das ligações amorosas pois, “afinal, a ausência da relação sexual obviamente não impede, muito longe disso, tal ligação, mas lhe dá suas condições”[3].

Seguindo esta recomendação lacaniana trago as linhas que seguem, na tentativa de promover uma investigação acerca das condições presentes nas parcerias contemporâneas[4].

Inicio com um curto trecho de uma sessão: João, 21 anos, mora em um país da Europa onde realiza seu curso universitário. Um dos principais motivos de agitação e angústia se relaciona à pergunta: “Como articular tranquilidade e prazer nas parcerias amorosas?”. Nas tentativas de iniciar algo neste campo, tudo fica muito turvo, conturbado, fazendo aumentar seus sintomas de insônia, dificuldade de concentração nas atividades acadêmicas e um excesso do pensar. Porém, uma de suas maiores preocupações é, “como não ser um cara abusador para uma garota”. Esta última inquietação se intensifica quando começa a ter encontros com um falasser não binário. Faz um esforço desmedido para utilizar sempre o pronome neutro – elu – conforme combinado, mas fracassa principalmente, porque a comunicação entre eles se dá em inglês. Preocupados em evitar que se magoem, tentam o acordo com as seguintes cláusulas: evitar que a parceria seja apenas uma situationship, fazendo com que esta avance para uma relationship; evitar grandes expectativas, cuidar um do outro para não se machucarem e, paradoxalmente, não fazer promessas. Após o engessamento dessa parceria e de uma crise depois de ter falhado em utilizar, mais uma vez, o pronome correto, inicia uma sessão em tom de frustração e extremo esgotamento – pergunta ao analista se ele pode ler um trecho do livro “As portas da percepção, céu e inferno” de Adous Huxley. Consinto com seu pedido, no que ele lê as palavras que seguem:

Vivemos juntos, atuamos uns sobre os outros e reagimos uns aos outros; mas sempre, e em todas as circunstâncias, estamos sós (…). Nos braços um do outro, os amantes tentam desesperadamente fundir seus êxtases isolados num único arroubo de autotranscedência; mas em vão. Todo espírito encarnado está, por sua própria natureza, condenado a sofrer e gozar na solidão. Sensações, sentimentos, ideias, fantasias, todos eles são particulares e (…) incomunicáveis. (…). Da família à nação, todo agrupamento humano é uma sociedade de universos insulares[5].

Este excerto do caso de João permite lançar perguntas. Algumas delas tentarei desdobrar em seguida, outras, prevejo deixar em aberto. O que faz com que dois se enganchem, sejam fisgados e iniciem uma parceria? O que permite que esta se mantenha? Quando uma parceria (ou uma tentativa) se dá, leva-se junto uma aparelhagem que se presta ao gozo, mas também à defesa de seu excesso: a linguagem/desejo (e sua fenda), o fantasma, o sintoma, o objeto a e o Um.

Podemos iniciar de modo prudente dizendo que fazer parceria no século XXI não é, necessariamente, mais problemático do que as parcerias dos séculos XIX ou XX.

Temos acesso, hoje, ao que a ciência e a evolução nos costumes puderam proporcionar – e não negamos seus avanços. Somos gratos às lutas de todos aqueles e aquelas que visavam e visam reduzir injustiças e desigualdades. É produto da tecnociência a oferta de tratamentos em saúde marcados pela inteligência artificial, o desenvolvimento de medicamentos de última geração e a produção de vacinas, para listar alguns desses progressos. Também é produto da tecnociência a revolução na comunicação, tal como vivida hoje, permitindo a rápida conexão, aproximando familiares, amantes e amigos. É a revolução na comunicação digital, com o surgimento da internet, que também favorece encontros, gerando matches, a partir de um trabalho de combinatórias e algoritmos. Porém, uma das perguntas que nós psicanalistas, devemos fazer é: “quais as particularidades e atributos das parcerias que se formam ou se mantém em nossos dias?”.

Quando falamos no “casamento” entre o Discurso Capitalista e o Discurso do Mestre, em sua face de tecnociência, é para que possamos perguntar também quais as consequências deste “casamento” e sua incitação ao consumo, para as parcerias dos seres falantes em nossos dias.

No Seminário 19: … ou pior, Lacan nos apresenta um ponto de virada em seu ensino, indicando, com a jaculação – Há Um – a presença do gozo em sua vertente de real, como não compartilhável. E, no Seminário 20: mais, ainda, Lacan diz: “Quem fala só tem a ver com a solidão”[6]. Estes dois momentos do ensino de Lacan estão diretamente articulados e dizem respeito ao tema das parcerias, objeto de nossa discussão. De que maneira? Podemos antecipar, trazendo um trecho de Jacques-Alain Miller em seu curso O Um sozinho: “Primeiro porque, no nível do real, é o Um que reina, não o dois”[7].

A partir das muitas questões elaboradas e apresentadas antes, resolvi fazer um pequeno retorno ao curso de JAM O parceiro sintoma (1997-1998), com a finalidade de recuperar, a partir do que ficou conhecida como a teoria do parceiro, as principais modalidades de parceria por ele descritas. Ele nos adverte de que, abordar este tema implica navegar entre duas rochas, no centro do redemoinho.

Miller[8] apresenta os seguintes tipos de parcerias: parceria imaginária (Eu – outro; a-a’); parceria simbólica (Sujeito – Outro); parceria do desejo/fantasma: ($<>a); parceria de gozo ($<>a, a=mais-de-gozar).

A imagem como parceira

A primeira dessas parcerias, o parceiro fundamental, primordial, como diz Miller, é a parceria imaginária, cuja unidade inicial é o Eu. As considerações de Lacan sobre o estádio do espelho fizeram com que desvanecesse o indivíduo e operasse uma cisão neste elemento supostamente indivisível fazendo par com “o outro, o outro especular, semelhante e também diferente, ao mesmo tempo modelo e rival”[9]. Nesta modalidade de parceria constitutiva é a identificação que aparece como peça chave.

Trata-se de uma parceria primordial para o Eu, na medida em que este está marcado pela prematuração do organismo. O Eu está marcado por uma falta, e esta falta é tamponada pela imagem. “A prevalência da imagem do outro no espelho provém do fato de que o eu se sente em um estado de não domínio com relação ao corpo”[10], conta Miller.

O parceiro simbólico

Acerca da parceria simbólica, Jacques-Alain Miller diz que a unidade simbólica do sujeito está simetricamente afetada por uma falta de significante, e é esta a razão pela qual Lacan foi levado logicamente a representar o sujeito por meio de uma S barrado, ou seja, para marcar, incluir ali, uma falta. Nesta vertente, de um lado está o sujeito que fala, e este sujeito que fala busca ser escutado, busca a quem se dirigir: caráter primário do sujeito, caráter secundário do Outro.

“A palavra do sujeito não pode formar-se, articular-se, senão no lugar do Outro, utilizando seu código, seus significantes e, portanto, fazendo do Outro o termo inicial do parceiro”[11].

Portanto, a raiz do parceiro simbólico está constituída por esta falta de significante a qual, supostamente, pode suprir um significante que tem que buscar no Outro. Esta relação é a que engancha o sujeito ao Outro.

Da mesma maneira que o conceito causal essencial para a parceria imaginária é a identificação, conta Miller, o conceito essencial na parceria simbólica é o reconhecimento. O reconhecimento causa satisfação e liga o sujeito ao parceiro simbólico.

“O termo reconhecimento forclui toda a questão que esteja, para falar com propriedade, ao nível do gozo. A satisfação essencial que espera o sujeito é uma satisfação simbólica e esta espera o enoda, o liga, à parceria simbólica”[12].

Porém, ao retomar o que Lacan apresenta no Seminário 20, desde seu título, Miller diz que é preciso perceber que o assunto é mais complicado. Mais, ainda, refere Miller, “é o contrário da satisfação: em satisfação há satis, basta!, basta!, no sentido de que já é suficiente”[13]. A ideia apresentada em Mais, ainda, torna infinito este horizonte do reconhecimento.

Vale a pena ressaltar que, apesar de Miller avançar para os demais modos de parceria, ele enfatiza que as duas parcerias expostas anteriormente continuam sendo válidas ao longo de todo o ensino de Lacan.

A parceria do desejo/fantasma

O Ensino de Lacan, por sua própria lógica, leva a uma terceira parceria, escrita com o fantasma, $<>a, fazendo dela o ponto pivô da experiência subjetiva.

Esta terceira parceria implica que o sujeito recebe o complemento da sua falta a ser sob a forma de um objeto a. As duas parcerias lacanianas expostas anteriormente convergem nesta terceira, já que esta parceria liga um elemento simbólico – o sujeito barrado, com um elemento da parceria imaginária. Ela desempenha, segundo Jaques-Alain Miller, um papel de gancho entre a parceria imaginária e a parceria simbólica, mesclando elementos que pertencem a uma e a outra: “Isso implica uma transformação do Outro. Já não se trata somente do Outro que tem o significante do reconhecimento, é necessário que o Outro seja o lugar onde o sujeito vai buscar este objeto a que lhe é necessário como complemento”[14]. É aí quando a toma o valor de objeto do desejo e aparece como o único positivo em relação a um sujeito que está em falta e com um Outro que também está. Abre-se, no ensino de Lacan, um duplo comentário: “do lado do Outro, o desejo do Outro ligado a a como expoente deste desejo; do lado do sujeito, uma reinterpretação de sua falta como eclipse ou como fading, diante deste objeto a[15].

Importante salientar que o sujeito não se sustenta frente ao objeto fantasmático; ele desfalece, fica sem palavras, e é nesse sentido que Lacan fala de eclipse.

A parceria de gozo

Em paralelo à terceira parceria, Miller introduz a quarta, a parceria de gozo, parceria libidinal. Para esta parceria, o matema se mantém, $<>a, porém o a aqui possui um outro estatuto, o mais-de-gozar, sendo o a movido ao registro do real.

“Não é suficiente que a contrapartida da parceria seja a imagem, não é suficiente que seja a palavra, não é suficiente que seja o objeto do fantasma, é necessário que esta contrapartida seja um preço extraído do gozo”[16],

a ser encontrado a partir do Outro. Nesta parceria, o ponto central é que a ela se agrega o organismo, a vida e a sexualidade, ou seja, o vivente:

“Nesta construção, que Lacan quer que seja puramente significante, pode-se dizer que assistimos a uma metamorfose: para poder incluir o mais-de-gozar neste funcionamento significante, é necessário transformar os termos de base. Não se faz possível com o sujeito vazio e não se faz possível com o Outro do significante, é necessário que um e outro sejam seres viventes, viventes e sexuados”[17].

Aqui, trata-se de levar em conta o corpo e a atribuí-lo tanto ao Outro quanto ao sujeito. Para acompanhar melhor esta parceria com o objeto mais-de-gozar, é importante lembrar que aqui Lacan supera um obstáculo epistemológico, que implica o falo.

Com o falo, o gozo era abordado a partir do complexo de castração e pelo complexo de Édipo, somente pela via da sua proibição (do gozo) e de sua negativização. É também por essa via que Lacan se separa do conceito de sujeito, por estar ligado ao significante como mortificado, fazendo com que ele nos apresente a proposta do falasser (parlêtre), que inclui o gozo do corpo. É o que nos mostra o seminário Mais, ainda; tanto o sujeito quanto o Outro, en-corps: “Se o Outro é tomado en-corps, se é tomado como vivente, deve ser tomado, portanto, como sexuado”[18].

Além do falo, a não relação

Seguindo nossa via de investigação dos modos de parceria, chegamos a um ponto extremamente importante, pois circunscreve dois modos de acesso ao Outro: um, por meio do gozo, pela via do objeto a, que vai em direção ao gozo do corpo próprio, passando pelo Outro pela via do circuito pulsional; segundo, o acesso ao Outro é um acesso por meio do amor, mas que deixa de lado o corpo e se liga à palavra. Os dois acessos são válidos para os dois sexos, conta-nos Jaques-Alain Miller, porém aqui

“Lacan pode dizer que o primeiro é, sobretudo, para o macho, o acesso macho ao Outro, o acesso por meio do gozo; enquanto do lado da mulher, o acesso ao Outro se realiza mais habitualmente por meio do amor”[19].

Estaria, de fato, a mulher mais afeita às coisas do amor? Ou teria algo no amor que “feminiza”?

Miller nos lembra que nesta vertente podemos encontrar as indicações de Freud sobre a perda de amor como equivalente à castração na mulher. Na orientação lacaniana, uma das referências a isto é o amor místico, no qual se observa uma relação com o Outro que “elude (evita, desvia-se) o falo e o a, etc. e que estabelece uma relação com este Outro como aberta ao infinito”[20], preparando o campo para que Lacan nos apresente a devastação como esta outra face do amor – ou seja, dar tudo, sem limite.

Deste modo, frente aos desencontros e frustrações da vida amorosa, alguns sujeitos podem experienciar o desencadeamento de um gozo ilimitado. Apesar disso, o mais frequente é que a via do amor seja uma forma privilegiada de operar uma localização do gozo, um ponto de basta para o excesso. Porém, alguns falasseres não parecem tão dispostos a encarar o preço em nossos dias.

O isolamento e o rechaço ao Outro

Philippe La Sagna, no texto Do isolamento à solidão, apresenta exemplos de sujeitos que evitam o encontro com o Outro, pois este pode deixa-lo, desaparecer, causar sofrimento – e o homem contemporâneo se encontrou com um novo parceiro, que ele chama de mundo: “O parceiro do homem moderno é o mundo, o mundo inteiro, mas um mundo em que o Outro desaparece um pouco mais todos os dias”[21].

Mas La Sagna nos apresenta uma interessante teoria de que a solidão constitutiva, se assim podemos dizer, pois marcada pelo Um que não é compartilhável, é absolutamente diferente do isolamento. Para ele, o Outro pode ser encontrado inclusive como um outro discurso – o discurso do Outro – que surpreende o sujeito, mesmo quando este sai de sua própria boca, em uma experiência de análise, por exemplo. O Outro desaparece todo o tempo, fazendo surgir a solidão. La Sagna propõe que seja construída uma espécie de “solidão para si”.

“A partir desse momento, é possível não ter mais medo de ir em direção a um Outro que corre o risco de desaparecer, porque sempre é possível se ‘refugiar’ nessa solidão”[22].

Esta via de rechaço ao Outro foi também abordada pelo filósofo sul coreano, radicado na Alemanha, Byung Chul Han, no livro intitulado A agonia do Eros. Algumas passagens se articulam aos excessos característicos do capitalismo e suas consequências nas parcerias contemporâneas.

A erosão do Outro e a agonia de Eros

Para Han, está em curso algo que sufoca o amor, que ele chama de “a erosão do Outro”, caminhando “cada vez mais de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo”[23]. Para ele, tudo é nivelado e se transforma em objeto de consumo e o corpo é equiparado a uma mercadoria: “Não se pode amar o outro, a quem se privou de sua alteridade; só se poderá consumi-lo”[24].

O autor também adiciona como fator complicador no mundo contemporâneo, o fato de cada vez mais os sujeitos serem empreendedores de si mesmos. O sujeito de desempenho, como ele chama, seria supostamente livre, na medida em que não está submisso a outras pessoas que lhe dão ordens e o exploram. Porém, o paradoxo apontado por Han, é que o sujeito empreendedor de si mesmo acaba por explorar a si mesmo; o explorado é o explorador, vítima e algoz ao mesmo tempo:

“A autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, pois caminha de mãos dadas com o (suposto) sentimento de liberdade”[25].

Na visão do autor, trata-se aqui de um mero viver: “Por isso, o escravo, que se apega ao mero viver e trabalho, não é capaz de experiência erótica, de cupidez erótica”[26].

Vivemos, de acordo com Han, no estágio histórico no qual senhor e escravo formam uma unidade: seríamos senhores-escravos ou escravos-senhores,

“onde o neoliberalismo, com seus impulsos do eu e de desempenho desenfreados, é uma ordem social da qual Eros desapareceu totalmente”[27].

Aqui, Han nos fala de sujeitos que simplesmente sobrevivem e que se parecem com mortos-vivos, que são por demais mortos para viver e por demais vivos para morrer.

Com não lembrar do que Lacan apresentou na capela de Sainte-Anne?

“O que distingue o discurso do capitalismo é isto: a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei – rejeição de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, de coisas do amor”[28].

Flashes da clínica contemporânea

“Como investir sem ser abusador?” – Assim como o pequeno trecho do caso do João, do início desse texto, recolho na clínica com adolescentes ou adultos jovens um certo vacilo, um não saber como se dirigir ao outro por quem nutre algum interesse. Tal dificuldade é frequentemente referida ao cuidado com o outro, ou com a própria imagem. Há um imperativo de ter que se mostrar “desconstruído”, não machista, não abusador. E isto os leva a um não saber como proceder. Teria aqui uma inibição provocada pelo engessamento aos discursos de mestria em nossos tempos?

Abrir a relação: o imperativo aqui é o de aproveitar tudo, todas as oportunidades; nada perder. Aqui, por em ato um aspecto do fantasma, em função do imperativo do aproveitar ao máximo, é comumente acompanhado da angústia. Vejamos a seguinte passagem:

“Frente à possibilidade do meu namorado beijar outra pessoa no carnaval, ocorre comigo algo visceral, dá um frio no estômago, nas entranhas e irradia para as axilas. Isso é angústia, não é? Mas não tenho forças para proibir, seria considerado careta”.

Em alguns casos, o imperativo da não monogamia tem que ser posto como uma condição de entrada na parceria.

O excesso de trabalho vindo dos “empreendedores de si mesmo” tem sido apontado por alguns como o que leva a uma deflação do desejo, uma exclusão do interesse pelos parceiros, pois todo o tempo e energia já foram gastos em outras atividades.

A compulsão por pornografia digital e a ausência de desejo pelo parceiro tem sido uma queixa presente. O pornô digital oferta uma gama de fantasias filmadas e disponíveis na “prateleira” dos sites, à disposição a qualquer hora nos celulares conectados. Nesta via, o objeto a abandona seu lugar de causa de desejo e passa ser objeto de puro gozo. Ter a fantasia pré-fabricada e ao alcance do bolso faz com que alguns se defendam do encontro sexual – sempre faltoso.

Algo semelhante se dá com o chemsex, prática contemporânea de fazer uso de (muitas) substâncias psicoativas para turbinar o prazer na hora do sexo. É frequentemente citado como gerando falhas de memória no dia seguinte, apagamentos da sensação de prazer e predomínio do gozo.

Em todos os casos, importa investigar as diferenças entre o que se passa no circuito do desejo e do fantasma – implicando o objeto a como causa –, e na iteração do Um de gozo pela via do mais-de-gozar.

Encerro com duas passagens de Lacan no Seminário 19. Devemos interrogar severamente “a irrupção dessa coisa estranhíssima que é a função do Um”[29]. No discurso analítico, continua Lacan, ao interrogarmos essa estrutura, o Um está no princípio da repetição. O que se produz no chamado estágio do mais-de-gozar é uma produção significante, a do S1 (sozinho): “outro nível do Um”[30]. Lacan nos incita a reconhecer como incide o Um em cada caso que atendemos.


[1] Lacan, J. “O Seminário, livro 19: … ou pior”. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 148.
[2] Lacan, J. “O Seminário, livro 19: … ou pior”, p. 18.
[3] Lacan, J. “O Seminário, livro 19: …ou pior”, p. 19.
[4] Texto apresentado no Seminário: As parcerias contemporâneas: o um-dividualismo e suas consequências. Coodenação: Angela Batista. Colaboração: Cartel composto por Angela Negreiros, Sarita Gerbert, Cristiane Zeitoune e Angela Batista. 25/05/2024.
[5] Huxley, A. As portas da percepção; céu e inferno. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015, p. 12.
[6] Lacan, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 128.
[7] Miller, J-A. O Um sozinho. Aula de 16 de março de 2011. Inédito.
[8] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós, 2020.
[9] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 257.
[10] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 261.
[11] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 260.
[12] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 263
[13] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 263
[14] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 265
[15] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 265
[16] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 266
[17] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 272
[18] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 274
[19] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 275
[20] Miller, J-A. “El partenaire-síntoma”, p. 276.
[21] La Sagna, P. “Do isolamento à solidão”. In: Carta de São Paulo. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – São Paulo. Ano 27, nr 1, maio de 2020, p. 92.
[22] La Sagna, P. “Do isolamento à solidão”, p. 93.
[23] Han, B-C. “Agonia do eros”. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 8.
[24] Han, B-C. “Agonia do eros”, p. 27.
[25] Han, B-C. “Agonia do eros”, p. 22.
[26] Han, B-C. “Agonia do eros”, p. 43.
[27] Han, B-C. “Agonia do eros”, p. 52.
[28] Lacan, J. “Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne”. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 88.
[29] Lacan, J. “O Seminário, livro 19: …ou pior”, p. 107.
[30] Lacan, J. “O Seminário, livro 19: …ou pior”, p. 159.