Maria Noemi de Araujo (CLIPP)
“Quem é essa mulher?”
Através da obra do compositor, cantor e escritor Chico Buarque, para quem a mulher é, no mínimo, um mistério, essa pergunta — quem é essa mulher? — presente nos primeiros versos de cada estrofe da sua canção-poema Angélica1, reverbera sem metáforas um estranhamento pela figura feminina.
Angélica é um lamento pela morte trágica da sua amiga, a estilista Zuzu Angel (1921-1976). Na semana de sua morte, a estilista passou na casa do amigo trazendo-lhe uma carta em que responsabilizava os militares caso viesse a lhe acontecer algo, além de três camisetas para suas filhas com “anjinhos” bordados, símbolo da sua busca desesperada pelo corpo desaparecido do seu filho Stuart Angel, preso político em 1971.
Segundo sua filha, Hildegard Angel, “mamãe trabalhava com música o tempo todo. Era apaixonada pelo Chico” pois dizia ter transferido para o Chico algo de Stuart, via nele algo do filho, tal como naquela coragem presente nas suas músicas de protesto. “Na loja da mamãe tocava música do Chico o dia todo” 2.
Além de tantos atos arriscados no Rio de Janeiro da época da Ditadura, a estilista decidiu internacionalizar sua briga para desvelar o mistério que rondava em torno da morte desse filho, “Que mora na escuridão do mar”. Inventou uma “coleção-protesto” criada especialmente para um desfile de moda nos Estados Unidos (o pai de Stuart era americano), além de seu figurino próprio, roupas e véus pretos, com adereços de crucifixos. Isso é parte do seu discurso para denunciar sua tragédia.
Como no verso “que canta sempre o mesmo arranjo”, naquela contingência em que a circulação da palavra estava sequestrada, essa mulher ousou incluir na cena da moda, do seu trabalho, e no seu próprio luto, a resistência ao regime ditatorial, naquilo que La Sagna denominou como próprio do feminino: “intriga, tagarelice socializadora, avatar do ‘prestar cuidados’, fonte de toda língua e laço social” (A língua e o aturdito). Sabe-se que Zuzu falava, cantava, bordava, costurava, desenhava, escrevia e entregava cartas obsessivamente. Com isso, essa mãe destemida fazia a palavra circular nas diversas camadas da sociedade. Mas, nada do seu discurso (sintoma) ressoava no corpo discursivo do Regime Militar, tratava-se de um encontro impossível.
O verso “quem é essa mulher, que canta como dobra o sino?” nos remete ao amor de uma mãe que só queria embalar seu filho e “deixar seu corpo descansar” — como Antígona, que não cedeu e sustentou seu próprio desejo. Em 1998, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos responsabilizou o Estado pelo assassinato de Zuzu.
Dizendo-se um tipo de voyeur, um “vedor” 3 de mulher, Chico revela seu gosto de ver o modo como “elas pensa, se move, reage”, como quem “fala, fala, fala e não resolve nada… É sempre uma surpresa!”. Pois “há mulheres terríveis, fazem coisas horrorosas” por algum motivo ligado ao feminino, que ele diz ser impossível conhecer. Isso também ressoa na narrativa do artista sobre os seus desencontros com Clarisse Lispector, de quem era grande admirador, e com quem nunca conseguiu, apesar de vários encontros, sequer entabular uma conversa. Em uma entrevista, com um sorriso acanhado, evocou uma afeição maternal que Clarisse tinha para com ele, concluindo: “eu não entendia muito bem aquela mulher”4.
1 “Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar // Quem é essa mulher / Que canta sempre esse lamento / Só queria lembrar o tormento / Que fez o meu filho suspirar // Quem é essa mulher / Que canta sempre o mesmo arranjo / Só queria agasalhar meu anjo”, Angélica (Chico Buarque, 1977).
2 Ver: Ocupação Zuzu Angel, Itaú Cultural, 2014, <https://www.youtube.com/watch?v=U7JPSMIUn2Q>.
3 Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=25PlXWefBqM>
4 Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=-htgwNuBCbs>.