Éric Laurent (AME / ECF / ELP / EOL / NEL / NLS / AMP)
Antonio Di Ciaccia me encorajou a fazer uma espécie de apresentação geral da relação entre o ensino de Lacan e a psicose infantil. Limitar-me-ei a uma apresentação mais pontual entre o ensino de Lacan e a psicose infantil. Esta é uma abordagem cautelosa, consistente com a posição do próprio Lacan sobre este ponto.
Sobre a psicose, Lacan, ao contrário de muitos psicanalistas do pós-guerra, não escreveu longos textos. Contentou-se com intervenções fulgurantes, que revolucionaram a abordagem da psicose antes e depois, mas de forma extremamente limitada. Há um seminário dedicado a esta questão: O Seminário 3, as psicoses, reescrito como texto em De uma questão preliminar. Depois, nada mais durante anos, até chegarmos a Joyce, o Sinthoma, onde ele reexamina a questão da psicose de forma sistemática, no estilo aforístico daqueles anos. É certo que, nesse ínterim, há marcos importantes.
No que diz respeito à psicose infantil, essa questão permaneceu ainda mais preliminar no ensino de Jacques Lacan. No entanto, ele nos deu referências extremamente valiosas e, também neste caso, absolutamente fulgurantes. Já tivemos a oportunidade de examinar um momento do ensino de Lacan sobre essa questão: após o Relatório de Roma, debruçou-se sobre a psicose no pequeno Dick, o caso princeps de Melanie Klein, a primeira criança psicótica tratada em psicanálise.
Lacan formula a questão em três pontos:
- O estatuto do imaginário
- A questão das relações de objeto
- A contratransferência.
Vocês sabem que esses são os três títulos de capítulos de uma página, que tive a oportunidade de comentar com vocês no ano passado, quando estive aqui – por isso não vou entrar novamente em detalhes.
- O estatuto do imaginário.
É evidente que aqui a questão central era a abordagem da psicanálise infantil – os dados clínicos coletados de crianças estavam, na verdade, confundindo todos os dados clínicos coletados nos adultos. O que parecia novo era o seguinte: tomava-se um fato clínico concebido e bem identificado na comunidade psicanalítica através da abordagem do dispositivo freudiano, e colocava-se em seu lugar um fenômeno, uma formação imaginária coletada de crianças e considerada, por ser mais arcaica, logicamente primária. Isso levou a uma verdadeira inflação de formações imaginárias na psicanálise.
Um problema crucial para Lacan: como reerguer a psicanálise? Ou seja, como considerar essas formações imaginárias a partir da perspectiva correta, da perspectiva do simbólico.
- A questão das relações de objeto
Aqui, novamente, esse interesse massivo na observação, ou o interesse pelas relações objetais iniciais, estavam revolucionando completamente a definição de objeto na psicanálise. Mas Lacan estava certo: após 20 anos de relações objetais, ninguém mais sabia o que era o falo. Foi o que ele percebeu desde o início.
- A contratransferência
A contratransferência era, de fato, naquela época, o desenvolvimento desta noção que acabara de chegar ao mercado (após o artigo de Paula Heimann de 1949), de modo que, quando Lacan escreveu em 1953, a contratransferência ocupava a mente de todos no que diz respeito à formação do psicanalista. A formação do psicanalista consistia em suavizar sua contratransferência! Afinal, foi exatamente isso que alguém, como André Green, pôde escrever no Le Monde (em 11/09/81) quando, supostamente, estava avaliando o ensino de Jacques Lacan. André Green observou que as novas tarefas do psicanalista, em sua formação, visavam sobretudo capacitá-lo a suportar cada vez mais coisas, a abraçar verdadeiramente toda a humanidade. E isso é feito suavizando a contratransferência; faz-se exercícios para isso. Certo. Este é um momento do ensino de Jacques Lacan, e examinei com vocês as consequências desse momento, ou seja, a reelaboração sistemática que Lacan faz do pequeno Dick.
Hoje, gostaria de considerar outro momento do ensino de Lacan, situado entre duas referências: a primeira, em 10 de junho de 1964, quando Jacques Lacan em seu seminário, comentou a obra que acabara de ser publicada por Maud Mannoni, no livro, A Criança Retardada e a Mãe. Ele comenta precisamente as teses apresentadas por Maud Mannoni, dando-lhe algumas indicações de como ele encararia a situação.
Vou ler para vocês esta breve citação introdutória, que se encontra na página 225 do Seminário 11 [1]: “… quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos…” – em especial, no caso de crianças com deficiência intelectual, ele observa o seguinte: “… É na medida em que, por exemplo, a criança, a criança débil toma o lugar, no quadro, em baixo e à direita [2], desse S, em relação a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais que o suporte de seu desejo, num termo obscuro, que se introduz na educação do débil, a dimensão do psicótico”.
Esta citação, extremamente rara nos seminários daqueles anos, é muito precisa no que se refere à introdução da dimensão psicótica na criança, neste caso, na criança débil, mas apresenta isso como tendo alcance geral: “Uma série inteira de casos…”.
A outra referência é de um texto publicado na época em uma revista chamada “Recherches“, de dezembro de 1968, que inclui um texto de Lacan de outubro de 1968 (outubro de 1968 – um grande ano!). É um dos raros textos de Lacan sobre as questões suscitadas pela psicose na criança.
Lacan participou de um colóquio de dois dias, onde a nata dos psicanalistas infantis da época explicou como lidava com as chamadas crianças psicóticas – e tratava-se mesmo de um colóquio internacional organizado por iniciativa de Maud Mannoni. Foi um colóquio absolutamente eclético, que reuniu pessoas de origens extremamente diversas: Laing, Winnicott, Cooper, Sami-Ali, Jean Aymé, Jacques Lacan – em suma, todos tiveram a oportunidade de se expressar e explicar como estavam se virando com a questão.
Lacan ouviu isso por dois dias e chegou a uma conclusão. É extremamente impressionante o quão pouco este texto foi lido. Foi pouco comentado, visto que existem pouquíssimos vestígios de comentários, embora seja um texto reescrito por Lacan. Não se trata simplesmente de uma transcrição de suas palavras; há uma pequena nota no final, na qual ele afirma claramente que, de fato, reescreveu um texto inteiro em forma de aforismos. Ele considera que este texto está marcado com um selo muito preciso, é atingido por uma posição de enunciação que o torna explícito, pois está marcado por uma discordância essencial. Conclui a reescrita que faz, dizendo: “… que vestígio resta aqui daquilo que se apresenta como discurso onde a concordância é excluída: o aforismo, a confiança, a persuasão, até mesmo o sarcasmo”.
E, de fato, durante esses dois dias de colóquio, em que todos tentavam explicar aos outros como faziam, Lacan concluiu, expressando sua discordância. Especialmente sua discordância geral com o colóquio, e até mesmo uma discordância particular sobre um texto com o qual ele é bastante severo, que é o texto de Sami-Ali, que o precedeu imediatamente, no volume “Recherches“.
Estes são os dois marcos que eu gostaria que explorássemos juntos: 10 de junho de 1964 / 26 de setembro de 1969. Já temos uma ideia de tempo que não é suficiente para torná-lo um momento no ensino de Lacan, mas parece-me que se pode considerá-lo como um momento, porque não existe apenas essa unidade arbitrária que eu recortei, mas existe uma unidade de matema. Vejamos o matema usado por Lacan na página 224 do Seminário 11[3]: 0, s. s1, s”, s”‘,. . .: Série dos sentidos
i (a, a’, a”, a”‘, … ) : Série das identificações
Não sei se algum de vocês já tentou pensar sobre isso: é absolutamente ilegível, porque primeiro você precisa perceber que é o mesmo que está na página 237 [4] – o que já dá uma pequena margem de erro – ; perceber que é a mesma utilizada na primeira versão da Proposição de Outubro de 1967 – esta proposição que inaugura a experiência do Passe – ; e continua sendo a mesma coisa, aliás, que está por trás das observações de Lacan neste texto de 1969, embora não esteja escrito. E se esta série de matemas for a mesma, esta variação, nós a vemos após a escrita dos quatro discursos de Lacan.
Ou seja, este momento no ensino de Lacan é o que precede imediatamente a precipitação da escrita dos quatro discursos, que ocorreu em 1970. Portanto, há neste momento uma unidade de matemas, mas não é só isso; há também uma unidade de preocupações.
O que interessava a Lacan naqueles anos era despertar seus alunos para as novas consequências que poderiam ser extraídas de seu ensino. A esse respeito, há um texto que recebeu pouca atenção — aliás, eu mesmo nunca tinha ouvido ser citado por ninguém antes de Jacques-Alain Miller fazê-lo na semana passada em sua palestra —, mas é um texto muito valioso: o prefácio de Jacques Lacan à tradução das Memórias de Schreber, que apareceu no Cahier pour l’Analyse nº 5.
Este texto é muito valioso porque, neste prefácio, Lacan considera que seu ensino está num ponto de virada. Esta edição é de dezembro de 1966. É, portanto, este momento que estamos analisando. Neste texto, ele fala do que chama, em seu ensino, de “A polaridade mais recente a ser promovida ali é do sujeito do gozo para o sujeito que representa o significante para um outro significante”.
Em outras palavras, o que ele está abordando aqui, o que ele chama de polaridade mais recente, é a polaridade entre dois modos de escrever o sujeito: o sujeito definido pelo fato de que um significante o representa para outro significante, e o sujeito – é uma expressão, como apontou Jacques-Alain Miller, é um apax, é uma singularidade na obra de Lacan defini-lo como sujeito do gozo – o sujeito coordenado ao gozo. Essa é uma polaridade que Lacan enfatiza em letras garrafais, acrescentando: “...não é isso que nos permitirá uma definição mais precisa de paranoia?”.
Não importa, por ora, qual a definição mais precisa que ele apresente; em todo caso, a preocupação de Lacan naqueles anos era levar seus alunos a refletir e despertar para as consequências que essa polaridade, a mais recente de seu ensino, tinha nos campos da neurose, da psicose e da perversão, para considerar que outras abordagens mais precisas estavam se tornando possíveis.
Eis, portanto, as razões pelas quais me permito propor este momento das relações entre o ensino de Lacan e a psicose na criança: a existência desses dois limites, essas duas citações explicitamente dedicadas à abordagem da psicose em crianças; a existência de uma unidade de matemas e de uma unidade de preocupações.
Agora, examinemos a abertura: o Seminário 11 e o comentário de Lacan sobre a obra de Maud Mannoni. Muitos de vocês conhecem este texto, A Criança Retardada e a Mãe. É uma obra um tanto antiga, que marcou a introdução da pessoa débil no campo da psicanálise com grande alarde, enquanto que, normalmente, ele era excluído; a psicanálise era reservada para pessoas inteligentes, ao que parece, o que era, obviamente, um erro de interpretação de uma advertência de Freud. Em todo caso, Maud Mannoni tinha a paixão por demonstrar que, pelo contrário, a psicanálise era especialmente adequada para pessoas com debilidade.
Tomo o capítulo 4 deste livro (publicado em 1964, quando Lacan estava realizando seu Seminário):
“… Vimos até que ponto a criança com atraso e sua mãe formam, em certos momentos, um único corpo, o desejo de um se confundindo com o do outro… de tal forma que ambos parecem viver uma única e mesma história. Essa história tem como suporte o corpo atingido, diríamos, por feridas idênticas”.
Eis então o núcleo, o coração da demonstração de Maud Mannoni: assim como no amor se faz um só corpo, um só coração, na debilidade a criança retardada e sua mãe têm apenas um corpo para dois. É nisso que Lacan tenta dar uma pequena cutucada. Ele diz: não é tanto que eles tenham apenas um corpo, uma única superfície de inscrição, uma única ferida; é que eles têm apenas um significante.
E esta é a resposta dele (p. 225 do Seminário 11 [5]): “… quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos….”.
Essa frase contradiz o que acabei de ler em Maud Mannoni, em vários pontos. Em primeiro lugar, não é o par formado pela criança e pela mãe, não é isso, é o primeiro par de significantes. Não é que formem um único corpo, mas sim que eles se solidificam, formando uma cadeia. Não é a mesma coisa considerar que a cadeia forma uma única frase, ou considerar que existe apenas um corpo. E, além disso, não é a mesma coisa dizer que isso é o que torna o débil especial, ou considerar que esse é o modelo de toda uma série de casos. Lacan, no fundo, propõe uma clínica estrutural.
Essa clínica estrutural é a seguinte: quando há holófrase – esse é o ponto comum – (as holófrases são frases que têm apenas uma palavra, mas que contêm toda a estrutura de uma frase. É como o imperativo “Venha!”, que, embora tenha apenas uma palavra, contém a função do verbo, um grupo nominal subjacente; todos os tipos de funções sintáticas subjacentes), então, quando temos o ponto em comum, isso se torna um único significante… Portanto, é o lugar do sujeito que determina uma série de casos, exatamente como Freud tentava apreender, captar, gerar a clínica dos delírios passionais a partir da negação do “Ich liebe ihn”. Não se trata de uma clínica baseada em posições sintáticas – a sintaxe é neutralizada uma vez que se tem a holófrase –, é uma questão de lugar lógico e de posição do sujeito. Lacan diz: “… em cada um desses casos, o sujeito não ocupa o mesmo lugar”. Dependendo da posição do sujeito, obtém-se — pelo menos essa é a ambição estrutural dessas duas linhas de Lacan —, fenômenos clínicos diferentes. E ele continua: “… É na medida em que, por exemplo, a criança débil toma o lugar, no quadro, embaixo à direita – isto é, o lugar do objeto “a” – em relação a esse algo a que a mãe a reduz, a não ser mais que o suporte de seu desejo num termo obscuro, que se introduz na educação do débil a dimensão do psicótico.” Eis aqui a grande prudência de Lacan, não é verdade? “… introduz-se na educação do débil…”; ele não diz na debilidade; “… na educação do débil, a dimensão do psicótico” [6].
Dito isto, a modéstia da afirmação de Lacan não deve fazer esquecer a ambição das linhas anteriores. Trata-se de gerar fenômenos clínicos a partir de uma pequena estrutura e produzi-los mecanicamente.
O matema utilizado ali, na página 224 (nota 4), é um tanto obscuro. Mas, mesmo assim, se o encararmos da maneira correta, ou seja, tentando organizar a polaridade que surge no ensino de Lacan nesse momento entre o sujeito determinado pelo deslizamento significante e o sujeito do gozo, podemos substituí-lo pela escrita do discurso do Inconsciente ou do discurso do Mestre.
Na época, ele ainda não tinha o objeto “a” escrito dessa forma; não escrevia o fantasma dessa forma. Neste texto, ele escreve assim: ele nota a correlação do sujeito não com o objeto “a”, mas o objeto como capturado na imagem: i(a), e a série dessa captura, a série dessas identificações. Mas todos percebem que isso será reescrito pela escrita do fantasma.
Na época, ele chamou isso de série das identificações. E ele opõe duas posições do sujeito: uma, correlacionada com o objeto “a”, o sujeito determinado em sua identificação, preso por seu fantasma; e a outra, do sujeito que desliza o tempo todo sob o significante, posição essencialmente vazia, que ele nota como “zero”, mas que abre o parêntese da série dos sentidos. Os efeitos do sentido de um lado, a correlação com o gozo, do outro.
Ele explica, nesse momento, que o que permite compreender o trabalho de Maud Mannoni, se o colocarmos de pé, ou seja, se não considerarmos que se trata de ter um único corpo – o que também é uma fantasia –, é o colocarmos em estrutura; é que no sujeito débil, a psicose se introduz para ele na medida em que ele é absolutamente determinado (em baixo à direita) do lado de suas identificações. E ele é determinado, não como Maud Mannoni observa, como “… o desejo de um se confundindo com o do outro”, mas como o objeto do desejo de um, sendo, a criança, o objeto causador do desejo da mãe. O que a exclui do campo do desejo. Porque, afinal, se o seu desejo se confunde com o da mãe, o desejo de um seria o desejo do outro, o que é o status normal do desejo, a menos que se entre na grande odisseia obsessiva de ter o seu próprio desejo, “eu quero o meu próprio desejo”. Obviamente, isso é impossível. É impossível se encontrar entre o seu desejo e o desejo do outro. Isso é estrutural.
No fundo, Lacan dava isso como indicação, considerando que a orientação do trabalho de Maud Mannoni representava um avanço da psicanálise num domínio clínico que até então lhe era opaco. Ele reconhece isso, mas sugere uma ligeira correção: a questão não deve ser abordada da perspectiva do sujeito do desejo, mas da perspectiva do sujeito do gozo. Visto que, de fato, entre dois significantes não há corte, mas uma holófrase — não o corte da operação paterna, por exemplo: Lacan enfatiza a hólofrase e não a função da metáfora paterna. Ele não lembra Maud Mannoni, não fica insistindo na “foraclusão!”, não é? Como tendemos a fazer com muita frequência no meio lacaniano, a dizer “e a foraclusão, e a foraclusão!”, como os médicos de Molière que ressuscitaram “o pulmão!”.
De que ele está sofrendo? É de foraclusão. Obviamente. Quero dizer, assim como o pulmão, é um ponto de referência importante e essencial. Mas ainda assim, devemos tentar variar um pouco nossa abordagem, para compreender, para termos, dentro da série de casos em questão, ângulos que nos permitam evitar uma causa universal como daquelas que derivam toda a patologia mental de distúrbios, de fusão com a mãe. E isso pode realmente variar desde o distúrbio psicossomático do vômito infantil até a doença mental mais sofisticada? É sempre essa outra forma de pulmão que é o distúrbio da fusão com a mãe. Isso também nos deixa enjoados depois de um tempo. Eu diria que nós também, em nossa debilidade de seguir o ensino de Lacan, podemos nos deixar levar a murmurar: A foraclusão! A foraclusão! Uma das lições deste texto na página 225 – é isso que eu queria destacar diante de vocês – foi a maneira como Lacan, nessa introdução da dimensão da psicose na criança, não enfatiza imediatamente a foraclusão. Ele mostra um dos efeitos dessa exclusão, que é essa holófrase, e gera uma série de casos que, explicitamente, vão do efeito psicossomático à debilidade – já que o efeito psicossomático é o que está na frase acima. Essa era, aliás, a ambição de Maud Mannoni, que fala da passagem dos problemas psicossomáticos à psicose no débil, em série. Eis, no fundo, a primeira retificação que Lacan propõe aos alunos que o seguem nessa época, para tentar tirar proveito dos novos pontos de vista de seu ensino.
Passemos agora ao segundo marco do nosso trabalho, este texto fulgurante – pois é decididamente esse o adjetivo que utilizo – sobre a infância alienada. Lacan acabara de assistir a dois dias de comunicações diversas, de pessoas que não eram necessariamente de sua escola e que, como Sami-Ali, vinham explicar que o inconsciente não era estruturado como uma linguagem. Lacan marca imediatamente sua resposta com o selo do desacordo, e logo em um ponto que ele observa com muita precisão. Ele diz: durante esses dois dias, ouvimos falar exaustivamente sobre a criança e sobre a psicose; por isso é bastante notável que nada tenha sido mais raro em nossas conversas desses dois dias, do que o recurso a um desses termos que podemos chamar de relação sexual [rapport sexuel], para deixar de lado o ato ou o gozo.
Em outras palavras, é possível passar dois dias discutindo o tratamento psicanalítico de crianças psicóticas, sem que se ouça falar em relação sexual [rapport sexuel] e gozo. É estranho, mas é verdade. Não há as palavras “gozo” e “relação sexual” [rapport sexuel]. Pensamos: eram os anos 67. Desde então, muitas coisas mudaram e, quando se fala em tratamentos psicanalíticos de crianças psicóticas, agora é preciso falar de relação sexual e gozo o tempo todo.
Pensei que precisava verificar isso. Comprei o último livro de Maud Mannoni, intitulado D’un impossible à l’autre (De um impossível a outro) e que, como ela mesma diz, é um retorno às preocupações que ela tinha em L’enfant arriéré et sa mère (A criança retardada e sua mãe). É um livro muito mais preciso do que simples relatos da vida em Bonneuil, é um livro com uma ambição clínica e que retoma uma certa tradição da qual ela se havia afastado. O que é realmente valioso é que ele tem um índice, o que é raro em livros na França. Bem, se olhar no índice, pode-se procurar o quanto quiser por “relação sexual” [rapport sexuel] e não encontrará; pode-se procurar por “ato sexual” [acte sexuel] e não encontrará; e pode-se procurar por “gozo” e não encontrará. Há “Brincadeira – Contra-brincadeira” [Jeu – Contre-jeu], há “linguagem”, mas “Gozo” não está no índice, nem “mais-de-gozar”. Existe o “Prazer (Princípio do)” e a “Boneca-flor” [Poupée-fleur], mas o “mais-de-gozar” não é um conceito; enfim, é um conceito proibido.
Então, obviamente, isso prova que Lacan estava certo em marcar seu desacordo; porque isso dura pelo fato de que ainda consideramos que podemos sair dessa situação com as crianças, substituindo o gozo-relação sexual pelo idílio com a mãe suficientemente boa. Repintar, se assim posso dizer, com as cores do “suficientemente bom”, o mito do idílio entre a criança e a mãe, não muda nada e nada muda o fato de que a magnífica descoberta de Winnicott do objeto transicional serviu, mais uma vez, para apagar isso: que entre a mãe e a criança, não se trata de cuidados, trata-se de gozo.
É claro que podemos dedicar todos os nossos cuidados a isso, mas, mesmo assim, sabe-se também que isso tem suas próprias leis. E que o ensino de Lacan, ainda em 1982, quando abordamos essas questões, certamente revolucionou completamente o primeiro momento do ensino de Lacan – aquele sobre o qual tive a oportunidade de falar a vocês no ano passado –, revolucionou a abordagem do campo da psicanálise da criança e da psicose. Isso se refere ao momento concernente ao sujeito do desejo. Mas a correlação entre o sujeito e o gozo continua sendo letra morta.
Em seguida, Lacan constata uma coisa: durante os dois dias, ele ouviu muitas comunicações e todas insistiam na ligação essencial entre a psicose e a liberdade. Em suma, o psicótico sofria de repressão social, bastava proporcionar-lhe espaços de liberdade para que ele se sentisse melhor. Lacan observa que ele se expressou dessa forma em 1946, em Observações sobre a causalidade psíquica. Esse texto marcou seu retorno após o silêncio que ele decidiu manter quando o inimigo da humanidade – o nazismo – ocupou a França. Ele enfatizou que, ao contrário de Henry Ey, não achava que a loucura fosse um insulto à liberdade. Pelo contrário, ele achava que liberdade e loucura estavam indissoluvelmente ligadas. Não há liberdade sem loucura. Mas isso não é motivo, uma vez que o percebeu, para se ignorar o fato de que a liberdade e o discurso sobre a liberdade é um discurso delirante. E, obviamente, substituir a psicose pela liberdade é apenas um ganho aparente; é uma substituição, evidentemente aproveitando-se de uma comunidade de estrutura. Isso não muda nada na questão da psicose. A prova de que isso não muda nada é que mesmo Cooper, que se tornou o defensor da liberdade nessa matéria, observa que existem leis na psicose, das quais nos livramos muito menos do que da liberdade: são necessárias três gerações para criar um psicótico. Isso serve como um lembrete de que o psicanalista, dada a sua própria prática, está em uma posição inadequada para esperar um futuro que permita o gozo irrestrito e ininterrupto.
Esse era um slogan daquele ano, 1968. Há um obstáculo que, para o psicanalista, desde que Freud escreveu “O Mal-Estar na Civilização”, é intransponível. É o que Lacan escreveu em “Alocução sobre as psicoses da criança”: “Toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, refrear o gozo” (p.362). Isso fica claro quando compreendemos que o que Lacan chama de “formação humana”, ele chamará no seminário do ano seguinte de discurso, de laço social. Todo discurso tem como essência e não por acidente, mascarar a não relação sexual. É assim que ele se expressará cerca de um ano depois. De onde vem esse termo refrear [réfréner], que não é nem o reprimido [réprimé] nem o recalcado [refoulé] freudiano? É um termo aproximado que não é conceitual, o refrão [refrain] do gozo! Não é um termo que ele manterá.
Mas, mesmo assim, chama a atenção daqueles que se dedicam à prática do tratamento de psicose com crianças e que insistiam nessa prática como prática de liberdade, que se depararam com leis, não apenas leis relativas ao caso: são necessárias três gerações e isso continua sendo importante verificar, como se constrói isso. Acho que cada um de vocês certamente tem casos em mente sobre isso. Talvez eu os mencione mais tarde.
Mas é útil identificar em cada um, como se constrói esse desencadeamento da psicose na criança. Que o Outro já precisa estar presente; que existe uma estrutura do Outro que a espera, em seu lugar – e que está regulada, e que desencadeou a psicose, a posteriori. Mas também existem leis que estão além da formação do caso, a saber, que todo discurso humano se baseia no fato de que o gozo tem um limite. Esse limite é que o sujeito do desejo está preso a um corpo que, por sua vez, regula esse gozo pelo princípio do prazer. Essa função foi destacada, mas ainda é preciso perceber que esse princípio do prazer é o que faz com que o gozo seja proibido. Lacan observa que esse limite – em um de seus textos, ele o chama de “quase natural” – é elevado, no discurso, à função do proibido.
Ora, o ponto em que Lacan insiste é que a contribuição de Freud não é nos proporcionar uma ética do princípio do prazer, mas, ao contrário, designar, por meio de seu discurso, as relações entre o sujeito e o gozo. Não é a mesma coisa considerar que a função da psicanálise é adequar o sujeito ao princípio do prazer, regulá-lo, ou considerar que, fundamentalmente, existe uma correlação entre o sujeito e esse gozo que, em essência, é irrestrito.
Em outras palavras, a própria correlação do sujeito com o gozo, como objetivo do discurso psicanalítico – apenas para mantê-lo – varre o mito do idílio entre a criança e a mãe, que se regularia pelo princípio do prazer entre a criança e a mãe. Há um abismo – é um termo que Lacan utiliza – do gozo que nunca conseguimos domesticar, conter, atravessar. Esses são os primeiros pontos com os quais Lacan começa seu exórdio: convocar seus colegas a se reafirmarem com firmeza na ética psicanalítica e, especialmente, a tirarem proveito dessa nova polaridade em seu ensino.
Daí a segunda parte do texto, que apresenta dificuldade para compreender a experiência analítica como uma experiência centrada na correlação entre o sujeito e o gozo. Especialmente para seus alunos que, na época, acreditavam de certa forma, que Lacan era aquele que tinha estruturado o inconsciente como uma linguagem. Assim sendo, para Lacan, o analista seria aquele que se contenta com belas palavras; a análise que ignora o afeto, a análise que ignora o corpo, e toda a tralha.
Lacan responde àqueles que o criticavam por não falar do afeto, devolvendo-lhes de bom grado o elogio, dizendo que eles, em todo caso, não falam do gozo. E depois, ele diz ainda que, desde que existem psicanalistas, não se pode dizer que se fala muito sobre o gozo. Em outras palavras, desde que, diz ele, o ser-para-o-sexo substituiu o ser-para-a-morte (aqui ele se refere a Heidegger e Pascal), enfim, desde que os psicanalistas ocupam o terreno que antes era dos teólogos ou filósofos, fala-se menos sobre sexo e gozo.
Lacan considera que “… embora seja difícil julgar se a vida sexual era mais fácil no século XVII ou XVIII do que na nossa época, o fato de que os julgamentos eram mais livres em relação à vida sexual decide a nosso favor”.
Ele considera que, efetivamente, não se pode dizer que os psicanalistas ajudem muito seus contemporâneos a julgar o sexo e a vida sexual. Os psicanalistas se calam sobre esse assunto. Bem, precisamente Jacques Lacan, a quem se poderia reprovar por não falar dos chamados afetos, ele que inventou dois ou três nos quais as pessoas em questão não pensavam, lembra-lhes que, efetivamente, ele também é um daqueles que se esforçam por manter aberto o discurso sobre a vida sexual, sobre as modalidades do gozo.
Isso ocorre no final da experiência — ele diz, “no final do ato analítico” — onde a castração aparece. É que a psicanálise conduz o sujeito a uma posição em relação à castração, mas ele só é conduzido a isso ao perceber as figuras de seu gozo. É isso que eu chamo de objeto pequeno a. Em outras palavras, o sujeito submetido à castração, que é o sujeito do desejo, o sujeito à esquerda (cf. desenho), realiza-se na experiência analítica como sujeito da castração, ao perceber sua determinação como sujeito do gozo. Lacan conclui com estas frases extremamente fortes, na página 364: “… Em outras palavras, o que institui a entrada na psicanálise provém da dificuldade do ser-para-o-sexo” da castração – que é uma dificuldade maior do ser-para-o-sexo, é um ser marcado por um menos essencial. “Mas a saída”… portanto, vemos claramente essa oposição entre a entrada na psicanálise pela castração, “Mas a saída… não seria nada mais do que uma reforma da ética onde se constitui o sujeito”. A ética é onde o sujeito se constitui, ou seja, o que o sujeito pode tomar como ponto de referência para o que constitui seu gozo. Isso não se aplica a Lacan, que continua: “… Portanto, não somos nós, Jacques Lacan, que só nos fiamos em operar sobre o sujeito como paixão da linguagem.”
Em outras palavras, ele contrapõe esse sujeito que inicia a psicanálise a esse sujeito correlacionado ao seu gozo. E afirma que ele, pelo menos, e todos aqueles que o conheciam bem, não se contentavam, como ele mesmo disse, com belas palavras. E ele disse que, por outro lado, são os outros, aqueles que não têm ideia dessa determinação, aqueles que a absolvem da obtenção da emissão de belas palavras, que têm a ideia de que a fala é uma ferramenta que permite traduzir a curiosidade que se tem do mundo.
Acabo de ler o livro recente de Margaret Mahler, traduzido em 1982, mas publicado em 1975, que apresenta e tenta apreender a gênese da linguagem na criança. Enquanto acreditarmos que as belas palavras, a própria linguagem, são o que nos permite expressar nossa curiosidade sobre o mundo, isso pode bastar para justificar essa curiosidade. Mas é preciso saber que, embora possamos ter curiosidade sobre o mundo, quando se trata do gozo, que é imundo, só há horror. Portanto, não é confiando na curiosidade e em suas traduções, que apreenderemos o sujeito no momento em que a fala falha e ele recua diante do horror de seu gozo.
Consequentemente, Lacan, de fato, não se contenta com uma concepção linguística da psicanálise. São aqueles que privilegiam a linguagem pré-verbal, que têm uma concepção linguística da psicanálise, que pensam que tudo é linguagem. Não! O objeto pequeno a, aquilo que resta do gozo para o ser falante, obedece a outras lógicas: a chamada lógica do fantasma. E isso não é uma questão linguística.
Em “Radiofonia” em 1970 ou no Discurso na E.F.P., Lacan dedicará longos trechos para apreender que, na verdade, sua operação é exatamente o inverso da operação do linguista. A operação do psicanalista é o inverso da operação do linguista: “… o valor da psicanálise é operar sobre o fantasma. O grau de seu sucesso demonstrou que é aí que se julga a forma que subjuga como neurose, perversão ou psicose”. Esses termos são preciosos, porque vemos que sua escrita sobre a localização do sujeito em relação ao fantasma, ao gozo, é válida no campo da neurose, no campo da perversão e no da psicose. Mas toda a questão, diz Lacan, é saber como operar sobre isso. Impossível de se mover… Ele não recua, não é? Impossível de se mover, não fosse a margem deixada pela possibilidade de exteriorização do objeto pequeno a.
É uma frase enigmática. A única possibilidade é a exteriorização do objeto pequeno a. Ele diz ainda: “… dir-nos-ão que é disso que se trata quando se fala em objeto parcial”. Não é verdade que, na maneira kleiniana de proceder e operar sobre o fantasma, o analista – como diz Melanie Klein – se introduz no fantasma? O analista se introduz no fantasma e se atrapalha. No entanto, ele realmente opera sobre ele; em nome de quê, então, Lacan pode dizer que propõe um novo caminho ao afirmar que se opera sobre o fantasma?
O analista kleiniano, com seu objeto parcial e sem o aparato do pequeno a e de construções tão complexas, pretendia operar sobre o fantasma. E é precisamente esse ponto que Lacan tenta esclarecer para seu público.
Ele diz: “… Justamente, ao apresentá-lo sob esse termo, de objeto parcial, já se fala demais sobre ele para dizer algo aceitável. Se fosse tão fácil falar sobre ele, nós o chamaríamos de outra forma que não objeto pequeno a”.
Em outras palavras, o que Lacan chama de operação do fantasma não é o que os analistas kleinianos chamam de operação sobre o fantasma com o objeto parcial. Aliás, não é fácil explicar essa história. Mas ele justamente se serve disso, considerando que os psicanalistas que lidam com crianças deveriam estar especialmente atentos a essa dimensão em que o objeto pequeno a se revela diferente do objeto parcial. A orientação que Lacan adota é, evidentemente, situar o sujeito no fantasma. É isso que ele tem em comum com os outros.
Mas é necessário não se enganar na abordagem do fantasma, e, no lugar de abordar o fantasma do paciente, construir um fantasma universal, na psicanálise. “A psicanálise constrói às pressas, com folclore, um fantasma postiço (fantasme postiche): o da harmonia alojada no habitat materno. Nem desconforto, nem incompatibilidade poderiam se produzir aí, e a anorexia nervosa é relegada a uma esquisitice.” (Alocução sobre a psicose da criança, p. 365).
Portanto, Lacan salienta que o fantasma essencial com o qual os psicanalistas estão preocupados, é o deles mesmos. O fantasma dos psicanalistas de crianças, é que existe uma harmonia entre a criança e sua mãe. É possível, aliás, ter estritamente o inverso, que é simplesmente considerar que existe um ódio entre a criança e a mãe. No entanto, enfim, sente-se deveras que é o inferno, o avesso de um paraíso sonhado. Na realidade, é mais complexo que isso. Lacan observa: “ porque, de imediato, entre a mãe e a criança, o que existe, o que há, é o Outro… Que preço de consistência se espera de destacar como pré-verbal o momento exato que precede a articulação patente daquilo em torno do qual pareceu baixar a própria voz do apresentador: a promessa? (la gage) … Lagache… demorei um tempo para reconhecer a palavra… Linguagem”. (Idem, 365)
Aqui, ele fazia alusão ao fato de que 1964 foi o momento em que ele acabara de ser expulso; Lacan foi excomungado, e assim havia membros honrados da A.P.F., incluindo Lagache, daí o jogo de palavras que Lacan arrisca entre Lagache e a linguagem. Contudo, ele diz: “Mas o que pergunto a quem tiver ouvido a comunicação que questiono é se, sim ou não, uma criança que tapa os ouvidos – dizem-nos: para quê? para alguma coisa que está sendo falada – já não está no pós-verbal, visto que se protege do verbo” (Idem, p. 365).
Lacan toma um detalhe clínico: efetivamente, esta criança autista se protegia, se protegia a cada vez que escutava uma voz ou um barulho. E o apresentador Sami-Ali tinha dificuldade, de todas as maneiras, em situar este fato de que a criança tapa os ouvidos. Essa é toda a questão, não é suficiente dizer que porque ela tapa os ouvidos,que isto não torna a entrar, que o verbal não torna a entrar. Ele defende-se contra alguma coisa que já está nele, e sabemos de imediato, que se opõe ao fato de que a linguagem está sempre ali entre a mãe e a criança.
A oposição que fazemos é que, o que há entre a criança e a mãe, é o espaço. É sempre a mesma coisa: nós cuidamos da distância entre a criança e a mãe. No melhor dos casos, chamamos isso de espaços transicionais; no pior dos casos, nós nos interessamos pelas posturas de cuidado materno. O único problema é que não há espaço que já não esteja tecido a partir da linguagem. Aliás, é o interesse… logo, o que me havia parecido no momento em que nós examinamos juntos os trabalhos da equipe Meltzer e a Clínica Tavistock, é que essas descrições das trajetórias de pânico da criança no espaço foram completamente correlacionadas por eles com fenômenos de estrutura, de um certo status do sujeito, que eles chamaram de “bidimensional”, e nos quais o ensino de Lacan tornou possível reconhecer nesse sujeito bidimensional o sujeito unidimensional da linguagem, em um sentido diferente.
Em seguida, Lacan diz que, se partirmos dessa ideia de que há sempre o Outro entre a criança e a mãe, o que acontece então é que temos que reavaliar o status do corpo.
Quais as relações entre o corpo e o gozo? É especialmente isso que Lacan pergunta a respeito do objeto pequeno a (causa do desejo), e é isso que toda a noção de objeto parcial não nos permite abordar de forma nenhuma. É uma nova definição de relações, de uma nova aliança entre o corpo e o gozo – ou, mais exatamente, de uma nova má-aliança entre o corpo e o gozo – que Lacan destaca como o ponto crucial de seu ensino. Este gozo não está no corpo. O objeto parcial, o que era antes abordado como objeto parcial, não é um objeto que convém ao gozo: é um objeto fundamentalmente fora do corpo. E ele tem esta fórmula, muito bela, nesse texto: “o objeto é um condensador para o gozo, na medida em que, pela regulação do prazer, ele é despojado ao corpo” (Idem, p. 366). Em outras palavras, o corpo sendo o lugar onde se opera a regulação do prazer, o gozo é sempre roubado dele, é sempre externo a ele.
O seio, a mama, não é a mãe, é um objeto da criança, é até mesmo, o objeto em que todo o seu gozo está condensado, todo o gozo que ele pode ter tido da mãe. Em troca, Lacan diz que a ruptura, o corte, passa entre a mãe e o seio. Desse ponto de vista, é muito diferente apresentar o gozo como sendo trocado entre a criança e a mãe ou, fundamentalmente, como não intercambiável. O seio é da criança e está sempre perdido para ele.
Daí o valor erótico da famosa pintura de Santa Ágata a que ele se refere. Trata-se de Santa Ágata contemplando – é o seu martírio – seus seios que acabaram de ser cortados. É o valor erótico desse encontro com o gozo que ele restitui um pouco. A psicanálise sempre teve dificuldade em descrever os valores eróticos ligados às grandes figurações de santos na cristandade. E as santas especialmente, que têm um valor erótico inegável. Não existe somente, não é mesmo, a Santa Ágata que perde seus seios, há também Santa Lúcia, a quem acontece a mesma coisa, com seus olhos.
Existe um romance de Sciacca, na Sicília, que se chama “Cândido” (Santa Ágata e Santa Lúcia são suas padroeiras: uma de Catania e outra de Palermo, se me recordo bem). O início do romance é uma secularização do mito religioso. O pai do herói sai de uma estação de trem. Em 1943, houve o bombardeio americano da Sicília, e ele passou por um momento de terror e, quando ele se levanta, a primeira coisa que vê é uma estátua de gesso coberta com dois olhos vivos que estão pendurados nela. É um momento de horror muito bem descrito que depois passa a definir seu relacionamento com o filho. Isso é uma estruturação do objeto – este objeto condensador de gozo e dissociado do corpo: aí está sobre o que Lacan quer insistir e que a abordagem do objeto parcial não permite liberar.
O corpo – se agora é o outro termo que é necessário considerar, já vemos melhor o que Lacan quer dizer com “um gozo fora do corpo” – como se define isso? Existem duas definições, ou duas abordagens do corpo em Lacan. Uma é: o corpo como fundamentalmente marcado pela desorganização, pela abertura do estágio do espelho, marcado por um menos-um biológico, e que, ao contrário, encontra sua completude fora de si mesmo, na imagem do outro. Ou, ao contrário, um corpo, um organismo vivo marcado pela plenitude, e que está ferido – para usar o termo usado por Maud Mannoni –, um corpo ferido, que o torna humano. Lacan dizia que, para um coelho que sofre de mixomatose, o fato de torná-lo cego dá a ele uma expressão humana. É uma frase magnífica no meio de um seminário, eu estrago um pouco a coisa por não lê-la para vocês como está escrita, porque está aí inserida. Então, em todo caso, essa ferida imediatamente transforma o organismo – que de outra forma anda sozinho – em um ser humano, porque é fundamentalmente desequilibrado, ferido. Pois bem, são essas duas figuras que, em ambos os casos, apreendem o gozo fora do corpo.
Em um caso, essa completude vem de fora e significa que é sempre o outro, i(a), que antecipa meu gozo. Ou então, o corpo se apresenta como fundamentalmente fragmentado, marcado por um menos, um menos de gozo. Lacan pôde falar da clareira queimada do gozo na selva das pulsões. O que a doce cócega escreve no corpo da criança é um deserto, é uma queimadura essencial. É porque ali, o gozo só virá de fora – o gozo não é correlativo ao corpo. O corpo é aquilo que está sempre sujeito à intrusão do gozo. E é isso que encontramos especialmente na psicose.
O que os psicóticos nos testemunham, diariamente, na clínica mais comum, é o que é um corpo. De qualquer forma, não é algo que fala; não há linguagem corporal. É um lugar de intrusão, constantemente aberto ao retorno sempre frenético do gozo. Especialmente no caso do psicótico, que não simbolizou esse gozo, não concentrou, no final das contas – já que Lacan usa a expressão “condensador” para o objeto – esse gozo no órgão que abandona, que é o falo. É por isso que o corpo do psicótico pode se tornar por inteiro, uma zona erógena; os órgãos podem se tornar zonas erógenas, tanto assim, que eles o são. A partir desse momento, é aí que reside o esforço do esquizofrênico, e de todos aqueles casos em que não há delírio: tentar fazer função de um órgão, quando não está no discurso.
Podemos, assim, apreender o esforço da criança, não para reconstituir uma metáfora delirante – como Schreber pôde fazer, mobilizando todo o edifício da linguagem para esse propósito –, mas para entender como a criança pode tentar exercer a função de um órgão. Dito de outro modo, como ele pode abandoná-lo? – já que a expressão de Lacan de faire fonction é o que vem no lugar – não é? – de função fálica, o Φx, que ele poderá escrever (desenho em resumo a fórmula da operação da metáfora paterna). O significado desconhecido, x, do gozo, ao qual a criança é confrontada, que ela coloca em correlação com o discurso da mãe, com seu desejo graças à operação paterna, simboliza-se no falo. Ademais, é o que ela abandona através da castração. É o que a introduz no discurso, no fato de que ela é marcada pelo ser-para-o-sexo, porque “não há relação sexual” (pas de rapport sexuel). A partir do momento em que, para ela, a operação não se produz, há relação sexual (do mesmo modo que para Schreber, existe relação sexual, quando ele se torna a mulher de Deus, assim como é para a pequena criança autista que se endereça a nós).
A criança autista está presa na relação sexual, o que a faz gozar. O esforço que faz é menos para mobilizar toda a metáfora, para reconstruir uma metáfora delirante, mas de faire fonction com seus órgãos, ela que não simbolizou isso no falo. Isso pode tomar várias formas clínicas. Por exemplo, efetivamente, tapar-se os ouvidos para efetivar faire fonction da voz. Se a criança autista faz este trabalho aterrorizante de faire fonction dos seus órgãos, não é porque ela tem um pequeno centro superior que está revirado e que é nos centros inferiores que se emancipam, como o organo-dinamismo gostaria de fazer acreditar. É porque a criança autista, como cada um de nós, é filha do logos. Ela faz o que pode para estar à altura.
Portanto, este momento do ensino de Lacan revela-se, eu espero tê-lo demonstrado diante de vocês, perspectivas de pesquisas clínicas ainda por fazer. Ou seja, trata-se de não considerar estes fenômenos como fenômenos de confusão do desejo, mas como a criança autista faire fonction do seu gozo. É algo a ser feito. Explorar os machucados do corpo pelo gozo. Em seguida, para aqueles entre nós, que temos a sorte e a infelicidade de cuidar de crianças psicóticas, temos ali um acesso ao coração mesmo da ética da psicanálise, e a possibilidade de compreender a que ponto estas crianças foram levadas a faire fonction de objeto pequeno a para a mãe; não que sejam objetos do desejo, mas são objeto causa do desejo, desse desejo. São condensadores de desejo para ela, e seu desejo nisso se extenua.
De onde o prefácio final deste texto de 1968 de Lacan, que é uma perspectiva que ele apresenta, que eu não vi em nenhum outro lugar na sua obra e, no fundo, é o título que eu queria dar à minha apresentação: “a criança generalizada”. Ele percebe que a psicanálise de crianças psicóticas permite especialmente abordar onde existem diversos tipos de corpos. Não é porque somos indivíduos biológicos diferentes que ainda assim nós somos corpos. Por exemplo, a criança que parece ser um corpo ou ter um, só é comumente, na verdade, o objeto de um outro corpo. O que parece ser um corpo é, às vezes, somente o sintoma de um outro. Lacan não considera que seja o caso do débil (cf. o texto sobre Joyce que ele havia escrito e onde observou que, afinal, uma mulher poderia aparecer como um sintoma de outro corpo). Que a criança pode reduzir seu corpo a ser inteiramente um condensador de gozo, como Schreber é um condensador de gozo (Deus goza dele, se aproxima e se afasta…), isso designa um espaço muito mais cruel do que a identificação da distância da criança à mãe, mas é da mesma coisa que se trata. Quando Margaret Mahler descreve o “emocional refewling” da criança em relação à mãe, é o “emocional refewling” de Schreber que devemos ter em mente.
Se, no fundo, essa experiência, muitas vezes atroz que é a nossa, de nos confrontar com isso, se conservarmos pontos de referência matemáticos – em seus matemas – de não nos desviarmos, de colocá-los em seu devido lugar, então poderemos de fato apreender como esse espaço, esse espaço todo entrelaçado com o gozo, no qual se faz a correlação do sujeito com seu gozo – é um espaço dedicado ao silêncio.
Isso é o que Lacan diz: “(…) algo linguístico está na construção do espaço (do espaço do gozo) (…)” E, em uma passagem que é enigmática neste texto, para aqueles que podem tê-lo lido, ele observa isso, ele evoca a diferença em latim entre taceo e silet, que são duas maneiras de dizer “ficar em silêncio”, mas não são a mesma coisa. Ele diz:
“Se o silet já visa, sem que se assuste com isso, por conta do contexto dos “espaços infinitos”, a configuração dos astros, já não basta para nos fazer notar que o espaço clama pela linguagem numa dimensão totalmente diversa daquela em que o mutismo solta uma fala mais primordial do que qualquer mom-mom? (Idem, p. 365).
Porque, de fato, o silêncio dos espaços infinitos é assustador. Ele era assustador, era assustador antes de uma ruptura, que é a do século XVII. Era assustador antes desse silêncio; esse espaço não era mais silencioso, mas povoado por muitas letrinhas. Quando Lacan observa que, de fato, a correlação do sujeito com seu gozo, que não é o sujeito apaixonado da linguagem, o sujeito que produz a bela palavra (parole) ou besteiras – em nossa experiência, a associação livre, – mas que é o sujeito à esquerda, o sujeito correlacionado, no canto inferior esquerdo, à cadeia significante, esse sujeito submetido à palavra (parole). Ele é diferente do da direita, que é um sujeito fadado ao silêncio, porque é confrontado com o espaço de seu gozo.
A ética da psicanálise deve, afinal, substituir a ciência; a ciência, de fato, silenciou a Via Láctea. Os astros não falam mais conosco; eles não falam mais conosco como falaram com os homens de todos os tempos. Embora existam físicos ganhadores do Prêmio Nobel que estão convencidos, em Princetown – eles escreveram livros, La Glose de Princetown – que é um tecido de obscurantismo; eles tentam fazer parecer que o espaço está falando com eles. Mas, no final, ninguém acredita nisso; nem mesmo eles.
E é claro que a ética da ciência tem feito calar. Pois bem, a ética da psicanálise, com suas próprias letrinhas, também tem que silenciar a fala febril que nos faz recuar desse gozo, que nos faz inventar esses mitos, esses mitos do idílio entre a criança e a mãe, ou qualquer outro mito equivalente. É o matema que efetivamente faz essa palavra retroceder e que faz o silêncio vencer. Daí o que Lacan diz: a ética da psicanálise é uma ética do silêncio, é uma surpresa, sabemos disso, quando Lacan escreve no final de seu texto, “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache”, onde ele evoca exatamente isso. Ele diz: “espaços infinitos empalidecem atrás das letras pequenas, que são mais seguras para apoiar a equação do universo; e a única voz no capítulo que podemos admitir além de nossos homens eruditos é a de outros habitantes que poderiam nos dar sinais de compreensão. Em que o silêncio desses espaços não é mais assustador”. E ele observa: “… Uma ética se anuncia (com a psicanálise), convertida ao silêncio pela vinda, não do medo, mas do desejo. A questão é saber como a tagarelice da experiência analítica leva a isso”.
Uma frase enigmática, de cujas coordenadas espero que apreendamos um pouco melhor, o caminho: a tagarelice da análise, desse sujeito de associação livre à esquerda, leva, através da chegada do desejo, ao sujeito não recuar do terror da castração, mas a tomar a medida de seu gozo no fantasma. E é a partir daí, livre de seu matema, que talvez ele consiga ficar em silêncio por outro motivo que não o horror.
(Bruxelas, 12 de maio de 1982)
Nota: Não incluímos a discussão que sucedeu à apresentação de Eric Laurent.
* La psychose chez l’enfant dans l’enseignement de Jacques Lacan traduzido com a amável autorização do autor. Extraído do Quarto Bulletin de Psychanalyse n° 9. ECF: decembre 1982.
Tradução: José Wilson Ramos Braga Jr. e Kátia Ribeiro Nadeau
Revisão: Giolana Nunes e Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
