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ALÉM DA QUARTA PAREDE 1

Balance by Hideo Tanaka

 

João Paulo Desconci (CLIPP)

Elucidando a diferença entre a razão e o sentido por meio da lógica, Lacan afirma que, partindo do aparelho gramatical, o que se pode extrair por conta da lógica “tem a ver com algo de ressonante” (LACAN, 1972/2011, p.86). É dentre as paredes da capela do Hospital Sainte Anne, um asilo clínico, que sua voz ressoa no seminário O saber do psicanalista, destinado a psiquiatras. A lição Estou falando com as paredes, retoma a posição inicial de seu ensino 1, que refere a segregação da doença mental ao discurso do mestre, assim, o termo mur (“muro” ou “parede” em português) é objeto de vários jogos de palavras quando fala dos impasses do amor, sob a forma de (a)mur 2. Segundo ele, as paredes aludem à caverna de Platão, como uma boca, onde reverberam os fonemas de lalíngua, e têm a razão de seus quatro discursos – pontos cardeais que determinam o campo lacaniano 3.

Figura 1 – Os quatro discursos. (Fonte: LACAN, 1969-70/1992, p. 65).

O que Lacan apresenta como discurso do mestre/senhor hegeliano (M), tendo importância particular entre os demais – o da histérica (H), o da universidade (U) e o do analista (A) – é a forma primeira, por razões históricas, e revela o discurso como uma lógica pela qual subsistem relações fundamentais impossíveis de se manterem sem a linguagem, mas que nelas pode inscrever algo para além das enunciações efetivas.

 

Figura 2 – Lugares ou posições no discurso (Fonte: Lacan, 1969-70/1992, p. 161.)

No caso do discurso do mestre (M), é como agente que governa, legiferando o gozo, que sustenta seu caráter repressivo, tendo como produto, o mais-de-gozar (a), razão pela qual o sujeito constitui sua fantasia ($<>a). Uma vez que é do significante, e não do conhecimento que o saber tem relação com o gozo, é em virtude da cadeia significante (S1-S2), por retroação, que se revela como verdade desse discurso, o sujeito dividido ($), definindo o saber inconsciente como discurso do Outro. Portanto, a referência de um discurso é aquilo que ele confessa querer dominar. Por isso, em seu caráter político, como eixo da subversão analítica 4, Lacan propõe “certa retomada pelo avesso do projeto freudiano” (1966/1998, p.69), indicando sua condição topológica.

Sobre a relação entre aquele que ensina e o ensinado, o ensino seria a transmissão de um saber. No entanto, essa viragem nos orienta para uma crítica ao modelo iluminista que se fundamenta na razão reduzida à objetividade e que determina o projeto científico moderno. Uma nova leitura da relação com o saber, na qual a função da fala e o campo da linguagem desvelam a condição do saber como suposto, já que é da divisão do sujeito entre saber e verdade que se trata, uma vez que “só posso ser ensinado à medida do meu saber” (LACAN, 1970/2003, p. 304).

Esse é o interesse de advir, no discurso da histérica (H), um saber (S2) como produção do próprio significante-mestre (S1), mas em posição de ser interrogado pelo sujeito ($) elevado a agente. Por outra via, quando o saber (S2) é agente, na universidade (U), convergindo com sua formulação por se revelar como ensino, “é o saber descaracterizado, em suma, pelo lugar de onde ele impera.” (LACAN, 1970/2003, p. 306). Assim, a atual crise da Universidade, encarnada no que Lacan chama de “aluninhos-de-professor”, se mantém em nada ensinando, exceto ao tomar os significantes-mestres (S1) não como produção, mas como a verdade. Por último, é pelo discurso do analista (A), diametralmente oposto ao do mestre (M), que o saber (S2) chega ao lugar designado como verdade.

Pela relação do saber com a verdade, adquire verdade aquilo que se produz de significantes-mestres no discurso analítico, e fica claro que a ambivalência daquele que ensina para o ensinando reside onde, por nosso ato, criamos o caminho para o sujeito, ao lhe pedir que associe livremente (o que significa: que os faça mestres) os significantes de seu percalço.” (LACAN, 1970/2003, p. 308).

Lacan conclui que “a verdade pode não convencer, o saber passa em ato” (1970/2003, p. 310) e este é o núcleo de onde procede seu ensino: de onde o ato ordena que a causa do desejo (a) seja o agente do discurso. Disso decorre uma nova política para o ensino, ou seja, da relação psicanalisante-psicanalisado – se isso pode ser ensinado, que Lacan visa marcar essa “distinção radical, que tem suas consequências do ponto de vista da Pedagogia” (LACAN, 1969-70/1992, p. 21).

Assim, ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a não produzir nada que possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma, em oposição à ordem social. Em sua política, Lacan afirma que o sintoma vem do real e seu sentido é o real, uma vez que ele se põe de través para impedir que as coisas caminhem de acordo com o discurso do mestre e seu derivado atual – o do capitalismo. Para ele, é pelo fato de que o capitalismo rejeita a castração, que deixa de lado as coisas do amor e foi aí que ela (a castração) fez sua entrada irruptiva no mundo, sob a forma do discurso analítico.

Finalmente, Lacan relembra que “é pela lógica que esse discurso toca no real, ao reencontrá-lo como impossível” e que “é esse discurso que eleva [a lógica] a sua potência extrema: ciência […] do real” (LACAN, 1972/2003, p.449). É nisso que a maneira como a verdade se formaliza na ciência, ou seja, a lógica formal é para Lacan, um ponto visado: para estendê-la à estrutura da linguagem não correspondendo a uma exigência de sentido, mas de transmissão. Se por um lado, faz uma crítica da dizência do lado do ensino, em favor do resgate do inconsciente enquanto vivo, por outro, falando com as paredes, faz repercutir que a formalização que a escrita científica instaura é corroborada por uma operação de leitura dos sintomas.

 

Referências Bibliográficas

LACAN, Jacques. Formulações sobre a causalidade psíquica. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1946/1998, p.152-194.

______. De nossos antecedentes. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966/1998, p. 69.

______. O Seminário. Livro XVII: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2ª ed., 1969-70/1992.

______. Alocução sobre o ensino. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1970/2003, p. 302.

______. O Seminário. Livro XIX: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2ª ed., 1971-72/2013.

______. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1972/2011.

______. O aturdito. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1972/2003, p. 448-497.

1 Formulações sobre a causalidade psíquica (LACAN, 1946/1998, p.152).
2 Traduzida como “(a)muro” em …ou pior (LACAN, 2001/2003, p.544).
3 Lição V, Seminário 17, O Avesso da Psicanálise (LACAN, 1969-70/1992, p.65).
4 Noção já esboçada nos Escritos (1966/21998), em retrospectiva à sua entrada na Psicanálise,