Daniela Camargo Barros Affonso (CLIPP/ EBP / AMP)
“… o termo Verwerfung. / Ele se articula nesse registro como a ausência de Behajung, ou juízo de atribuição, que Freud postula como precedente necessário a qualquer aplicação possível da Verneinung, que ele opõe como juízo de existência, ao passo que o artigo inteiro em que ele destaca essa Verneinung como elemento da experiência analítica demonstra nela a confissão do próprio significante que ele anula”. (Lacan, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos, p. 564. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998).
Lacan aborda o termo Verwerfung para diferenciá-lo do recalque e demonstrar sua importância para a conceitualização da psicose. Para tanto, apoia-se no texto de Freud A negativa. Aparentemente escrito para descrever um fenômeno da clínica, o texto freudiano acaba por elevar o mecanismo da Verneinung (a negativa, ou a denegação) ao patamar estrutural. Na clínica, seria um artifício utilizado pelo analisante para revelar o recalcado pela sua forma negativa: “O senhor me pergunta quem pode ser essa pessoa no meu sonho. Não é a minha mãe”. A Verneinung é, assim, uma forma de “suspensão do recalque, [mas] naturalmente ainda não em sua plena aceitação”1.
A Verneinung remete ao ponto estrutural da constituição do sujeito em sua condição significante. O sujeito estaria originalmente numa condição de afirmação – Bejahung – constitutiva. Neste momento mítico, haveria uma aceitação por parte do sujeito (embora ainda não haja propriamente um sujeito) de uma inscrição original. Contudo, algo dessa afirmação original tem que ser expulso, numa exclusão fundamental, permitindo um buraco na estrutura, e consequentemente, a movimentação em cadeia dos significantes. A negativa seria uma sucessora da expulsão (Ausstossung).
Num primeiro tempo da Verneinug há apenas um “juízo de atribuição”: o que é bom ou mau. Com o abandono da preponderância do princípio de prazer, a psique aprende “que não é somente importante saber se uma coisa (Ding) possui uma qualidade ‘boa’, isto é, se merece ser acolhida pelo Eu, mas também se ela está presente no mundo externo, de modo a que seja possível apoderar-se dela conforme surja a necessidade para tal”2, ou seja, o “juízo de existência”. É preciso que o objeto seja afirmado primordialmente numa realidade significante para que possa ser posto à prova em sua realidade de existência. Existir como significante pressupõe que tenha desaparecido como coisa – das Ding.
Lacan radicaliza este esquema freudiano apontando a importância desta inscrição originária na determinação do mundo simbólico. Esta simbolização primordial tem a função de dar ao sujeito a estrutura através da qual poderá reencontrar o objeto. A Verwergung se daria por uma falha nessa afirmação originária e por uma rejeição de um significante primordial determinando uma não inscrição em primeira instância. É assim que “tudo que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real”3. Eis o mecanismo da psicose.
1 Freud, S. A negativa
2 Idem.
3 Lacan, J. O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 21.