
Lygia Clark, Caranguejo duplo, 1961. Acervo Pinacoteca de São Paulo
Daniel Gomes Batelli (CLIPP – Oficina de Lógica)
Através do primeiro capítulo do Seminário 14, A Lógica do Fantasma, no qual Lacan comenta sobre a possível leitura do signo da punção como uma bicondicional e também faz alguns comentários sobre o uso do Crosscap, uma interpretação salta aos olhos: ambos têm uma relação lógica, um valor de verdade semelhante.
Comecemos pelo Crosscap.
Uma figura topológica constituída pela costura de dois elementos: uma banda de Moebius e um rondelle – uma “meia-esfera”. Apesar de ser uma figura difícil de se visualizar por sua impossibilidade de construção material, o conceito fica mais claro quando se pensa em somar as propriedades que esses dois elementos dão ao Crosscap. O rondelle fornece sua propriedade “esférica”, transformando a costura numa bolha, e a banda de Moebius fornece a propriedade de uma continuidade entre dentro e fora.
Existem apenas duas maneiras de se recortar um Crosscap. O primeiro tipo seria um recorte que passe apenas uma vez pela linha imaginária que une o dentro e o fora da figura. Esse corte tem como resultado um único elemento, chamado na topologia de “plano projetivo” – um disco que se torce sobre si mesmo. O segundo tipo é o que passa duas vezes por essa linha, ou nenhuma vez – ambos são topologicamente idênticos. Desse corte obtém-se os dois elementos antes citados, ou seja, ou se obtém a banda de Moebius e o rondelle– ou, nos termos de Lacan, o sujeito barrado e o objeto a – ou não se obtém nenhum.
Um comentário breve sobre o elemento da bicondicional a ser necessariamente lembrado: seu valor de verdade. A bicondicional tem várias nuances. No entanto, nesse contexto, o elemento que interessa é sua tabela de verdade, ou seja, o fato de ela ser verdadeira apenas quando seus dois elementos têm o mesmo valor de verdade. Uma bicondicional é formada por dois elementos: p e q. Então, temos p <–> q (lê-se “p se e somente se q). Isso quer dizer a mesma coisa que, se p então q e se q então p. Essa proposição lógica só é verdadeira em dois cenários: se ambos os elementos forem verdadeiros ou se ambos forem falsos.
Da mesma forma, como visto acima, por meio do corte no Crosscap temos que, ou $ e a são ambos verdadeiros ou ambos falsos; ou se obtém os dois ou nenhum – não existe outra alternativa. Percebe-se que o “valor de verdade” da bicondicional e do corte no Crosscap é o mesmo.
Mas por que então, falar dessa figura complicada e não simplesmente de lógica proposicional?
Pelo fato de o Crosscap ser uma figura, pode-se adicionar a esta uma série de elementos que não caberiam nessa simples proposição lógica. Ainda se é de lógica que Lacan está falando, ele não esquece da bicondicional. No entanto, por meio dessa figura ele acrescenta diversos outros fatores, como: o tecido da figura ser realidade “de um lado” e desejo “do outro”; o fato de não ser possível reconhecer o lado de dentro e o de fora do Crosscap para aquele que se encontra em sua superfície – a única dimensão da qual é possível perceber esse “dentro e fora”, que é a dimensão do Outro é o próprio corte em si. Existem outros elementos, mas o ponto é que isso não cabe em “p <–>q”, apesar de caber no Crosscap.
Resta uma questão: qual a motivação de Lacan para cometer um erro topológico – certamente propositado – e dizer, na página 18 do Seminário 14, que um corte que passe uma única vez pela linha imaginária produz apenas um rondelle?