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DEPRESSÃO E A CLÍNICA DOS SIGNIFICANTES-MESTRES

 

Domestic interior by Clayton Schiff

Cristiane Melo

 

Muito se fala sobre depressão, chegando a ser apontada como um fenômeno moderno, especialmente no discurso comum em que o termo vem sendo associado à tristeza e ao vazio, mas se destacando mesmo como fenômeno impulsionador da indústria de fármacos, que se apresenta como “solução” para o sofrimento humano.

Sabe-se que a clínica psicanalítica refuta a ideia de uma entidade “depressão”, ou seja, não a reconhece como estrutura ou sintoma, no entanto, essa mesma clínica não pode ignorar que esse significante insiste em aparecer e, à luz do discurso do mestre, coloca a psicanálise em questão, especialmente quando surge o efeito curativo, mesmo não sendo o foco da clínica psicanalítica.

A tristeza associada à depressão está relacionada ao capitalismo e é uma preocupação para o Mestre, que quer que tudo ande. Godoy (2006, p.1), citando Agamben, explica que a questão se refere à ética do trabalho, pois os deprimidos atentam contra o imperativo da produção e o desempenho no circuito da avaliação.

A ênfase na concorrência de mercado, nas novas tecnologias de informação, no consumo em massa, submete o sujeito contemporâneo ao imperativo do gozo em excesso, onde o marketing seria o empuxo ao gozo com a promessa de um gozo último. Os reflexos sobre a subjetividade, portanto, vão se apresentando nas mais variadas configurações clínicas da psiquiatria, a exemplo da depressão.

O discurso do mestre reflete a tendência à totalização presente no simbólico, onde prevalece a ilusão da existência do Outro do Outro e da relação sexual. É dizer, um discurso que não admite uma falta e, portanto, precariza o inconsciente em razão da negação do sujeito dividido.

Como a tristeza é um sentimento humano e expressa uma dor que é própria do existir, pois nada é permanente, o sujeito não é completo e haverá sempre o gozo se opondo ao desejo, Lacan vai buscar refúgio nas ideias filosóficas, especialmente a ética de Espinosa , que é uma ética da felicidade.

Nessa linha de ideias, Lacan aponta a tristeza como uma dor de existir e a expressão “depressão” aparece no texto “Televisão”, onde é caracterizada como uma falta moral, covardia moral, que só se situa a partir do pensamento, do dever do bem dizer ou de orientar-se no inconsciente.

A tristeza, portanto, é consequência daquele que não busca saber sobre o seu desejo, que não se guia pelo seu desejo, que não pensa a respeito. Mais que isso, é um sujeito que não sabe e não quer saber, daí a expressão covardia moral, pois se afasta do dever ético do bem dizer que, neste contexto, refere-se especificamente dizer sobre aquilo que o sujeito está preocupado naquele ponto de impasse que causa o que o aflige.

Acontece que esse quadro de tristeza se agrava quando, no discurso do capitalista, o sujeito é condicionado a não reconhecer o valor da castração como motor e causa do seu desejo, havendo um recuo diante de um saber que se impõe a todo sujeito, seja pela via do sonho, do lapso ou do sintoma.

Para Miller (2011, p. 20), o discurso do mestre vem produzindo categorias clínicas e a depressão seria uma delas, reclamando uma indústria de tratamento universalizante, que vê o sujeito como um exemplar de uma categoria: depressão.

Ocorre que o objeto a, motor da psicanálise, é aquele que não se consegue compreender com facilidade, é o inassimilável, funcionando como um saber inexplicável, que não está em consonância com o discurso do mestre, que sempre exige explicitação. É por essa razão que Miller critica a clínica que visa ao efeito terapêutico rápido, pois faz referência ao discurso do mestre, que tem por foco o sintoma.

O objeto a outorga valor singular ao que é dito, logo, não se adequa a uma clínica universalizante. Segundo Miller, a captura do inconsciente real por meio do discurso analítico é completamente diferente. Cada sujeito tem a sua própria resposta, não há uma homogeneização, bem como não há permanência, ou seja, uma resposta para sempre, pois, na vida, haverá sempre contingências e uma reinvenção pessoal de cada um para cada contingência.

Então, não há uma clínica diferencial para depressão e, inclusive, essa sensação de vazio e de tristeza pode até ser um passo para compreensão de que, de fato, há o vazio e as relações são frágeis e evanescentes, mas que poderão ter valor à medida que se relacionam com a causa do desejo do sujeito.

Daí a necessidade de a psicanálise falar sobre a depressão, até para reconhecer-se no seu propósito, que está longe de ser terapêutico, mas de reação à homogeneização, ao “como todo mundo”, ao que não afirma a singularidade do sujeito, não validando, portanto, a clínica dos significantes-mestres.

 

 

REFERÊNCIAS:

CHAUÍ, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

GODOY, Claudio.Tristeza y depresión. Dossier depresión. Revistavirtualia, Febrero 2006, año V. Disponível em: < http://www.revistavirtualia.com/articulos/543/dossier-depresion/tristeza-y-depresion >. Acesso em: 10 de jan. de 2022.

LACAN, Jacques. Televisão. Rahar Ed., 1993.

MILLER, Jacques-Alain. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Tradução Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

MILLER, Jacques-Alain. O inconsciente real. 2006-2007. Opção lacaniana online. <http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n4/artigosb.asp>. Acesso em: 22 de fev. de 2022.