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FARMACOCRACIA NO SÉCULO XXI: O MARKETING DO MEDO

 

Walters Wick “I spy fantasy”

Emanuelle Garmes (CLIPP)

Fear of missing out (FOMO) é um conceito bastante utilizado por norte-americanos para definir a “apreensão generalizada de que outros possam estar tendo experiências gratificantes das quais alguém está ausente”1. Patrick J. McGinnis cunhou o termo e o popularizou em um artigo de opinião em 2004 na The Harbus, revista da Harvard Business School, quando as plataformas digitais nos deram acesso às imagens dos usuários 2. O FOMO gera a sensação de perder oportunidades e um desejo compulsivo de acompanhar continuamente o que os outros estão fazendo/consumindo.

Ao considerarem que determinado produto tornou-se uma norma social, os usuários se perguntam o que podem estar negligenciando se não experimentarem também. Em geral, a mensagem traz uma sensação de urgência que incentiva a ação, para não lamentar mais tarde.

O FOMO vem influenciando pacientes em todo o mundo a consumir cada vez mais fármacos. Por exemplo, a disseminação do uso do baby botox (aplicação de toxina botulínica na pele aos 20 anos de idade, para prevenir rugas) e de psicoestimulantes como o Venvanse para combater a procrastinação no trabalho (antes o uso ficava restrito ao tratamento de uma doença – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), foram fortemente influenciados por esse tipo de conteúdo digital produzido pelos próprios usuários.

Antes das redes sociais, o principal alvo do marketing da indústria farmacêutica era o médico, por meio de propagandas em consultórios, congressos ou revistas científicas. Hoje, com as redes sociais, a indústria se beneficia diretamente do consumidor, sem necessidade de intermediação do saber médico. Postagens e depoimentos são realizados por pacientes e influenciadores nas redes sociais, envolvidos numa atmosfera otimista, para alimentar a suposição de onipotência da ciência, sobre todos os males.

A indústria farmacêutica no século XXI está em vias de se renovar, e busca modificar legislações, para atuar fortemente nas mídias sociais e inflacionar ainda mais as vendas de medicamentos 3.

Jacques Lacan propôs o discurso do capitalista para apreender a questão da circulação das mercadorias no mundo e da mais-valia formalizada por Marx, reformulada em mais- de-gozar. Avesso à perda, o discurso do capitalista não coloca nenhuma barreira que impeça o gozo ou a satisfação, ao contrário dos quatro discursos inventados por Lacan em 1969 (Livro 17 – O Avesso da Psicanálise). A premissa de que, “tudo é possível” tratar, dá mostras da articulação da ciência com o discurso capitalista, em que o sujeito é guiado pelo objeto, de acordo com as leis do consumo, e se sente impelido a influenciar os demais, mesmo em temas que demandariam saber e medida: “os indivíduos se descobrem em uma condição em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes” 4. A conjunção da ciência com o discurso capitalista reduz o sujeito a um fato biológico, e portanto, reordenável por meio de medicamentos, de acordo com os ideais contemporâneos de sucesso e eficácia, numa corrida contra o tempo: “Já que posso, devo fazer o quanto antes”. Um imperativo superegóico cuja exigência pulsional demonstra o que Laurent chamou de “face mortal’ no estado atual da civilização 5. Mostra disso, é o incentivo ao uso cada vez mais precoce de psicotrópicos em crianças, como sugerido no artigo “Preschoolers with ADHD Improve with Low Doses of Medication” 6, disseminado em diversas mídias sociais.

A conhecida “medicalização” promovida pela indústria farmacêutica, que estende os limites de doenças tratáveis, expandindo mercados para novos produtos, bem como transformando situações comuns em problemas médicos, propagam a noção de risco como doença 7 – agora seguem impulsionadas pelo FOMO. O medo a serviço da farmacocracia.

 

Referências:

2. Gupta M, Sharma A. Fear of missing out: a brief overview of origin, theoretical underpinnings and relationship with mental health. World J Clin Cases. 2021;9(19):4881-4889.

Kozodoy, Peter (2017-10-09). “The Inventor of FOMO is Warning Leaders About a New, More Dangerous Threat”. Inc.com. Retrieved 2017-10-10.

Syrkiewicz-Świtała M, Romaniuk P, Ptak E. Perspectives for the Use of Social Media in e-Pharmamarketing. Front Pharmacol. 2016 Nov 21;7:445. doi: 10.3389/fphar.2016.00445. PMID: 27917126; PMCID: PMC5116467.

LACAN, J. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1950). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: J. Zahar , 1998, p 146.

LAURENT É, A Sociedade do Sintoma. A psicanálise, hoje. Contra Capa, RJ, 2007, p. 171.

5. Preschoolers with ADHD Improve with Low Doses of Medication, disponível on line em https://www.nih.gov/news-events/news-releases/preschoolers-adhd-improve-low-doses-medication, acessado em 19 fevereiro de 2023.

Moynihan R, Heath I, Henry D. Selling sickness: the pharmaceutical industry and disease mongering. BMJ. 2002 Apr 13;324(7342):886-91. doi: 10.1136/bmj.324.7342.886. PMID: 11950740; PMCID: PMC1122833.