
Fonte: Roy Lichtenstein ‘Preparedness’, de 1968
Olenice Amorim Gonçalves (CLIPP)
Contingências perturbadoras-profícuas
Duas contingências me animam a sustentar uma leitura da questão trabalhada na Seção Clínica em 2024, “O fazer do analista: perturbar a defesa, ainda?”
Ao assistir à minissérie britânica “Adolescence” [2], enquadro uma das últimas cenas, na qual duas personagens ilustram uma entrevista para elaboração de laudo psicológico em apoio a decisão judicial, realizada por uma psicóloga clínica à personagem principal. Para além da distinção do objetivo, enfoco na condução da entrevista, no manejo operado, opondo a condução a de um interrogatório ou inquérito com perguntas pré-estabelecidas. A riqueza na condução discursiva encenada pela psicóloga faz falar livremente o sujeito, aclara algo que me ocorre ser ilustrativo dos momentos em que a perturbação da defesa acontece no cerne de uma análise. Por motivos éticos é impossível contar aqui com a transcrição de uma associação em análise na vida-real, assim sirvo-me da arte.
No caso da película citada, há dois momentos em que o adolescente se levanta da cadeira em ‘acessos de raiva’ que acometem seu corpo, indicando que algo da articulação dos significantes, das palavras, da linguagem, e o real sucumbiram ao hiato. Uma incompatibilidade. Não havia palavras para dizer de um núcleo especifico com qual o sujeito se depara num só depois do dito: quando o S1 na frase “eu sou feio” emerge e, a partir daí o sujeito dá-se conta de que um dito escapou – “você quer saber se eu tinha condição de entender o que eu fiz”, então confessando.
A outra contingência ocorreu diante do verbete “… o sujeito não é outra coisa senão uma defesa…” [3]. A defesa é esse algo que se anuncia desde o início e que comparece mais, ainda…: esse caroço oco [4]. Um ponto de iteração no corpo, ali onde o vazio se faz inominável, a associação livre vacila, tropeça, des-associa, questiona, interrompe, irrompe. Ali, naquele ponto, nem sempre de fácil localização, emerge algo da defesa, um salto, uma ruptura na linha associativa, indicando um impossível na relação real/semblante [5]; isso que é um furo encapsulado, a partir do qual o falasser passa a ver-se com as mais singulares soluções enquanto pulsar, viver.
Perturbar a defesa
Na Seção Clínica [6], a questão se faz: o que distingue a defesa e a resistência, no contexto de uma psicanálise?
Uma hipótese se anuncia: uma das distinções entre a defesa e a resistência estaria em a resistência comparecer como uma resposta à defesa perturbada. A resistência viria apontar um índice do fazer do analista; um indicador de efeito do abalo, da perturbação da defesa. Ou seja, quando, na trama do discurso associativo, o falasser de-para-se (si) com uma impossibilidade de significantizar, representar pela via simbólico-imaginária, algo do real emerge, algo irrompe como resposta. A resistência, então, se manifestaria como uma das possibilidades de resposta à defesa perturbada.
A defesa primária é o que emerge diante da inexistência da relação entre semblante e real. É daí que insurge, desse impossível de fazer uma relação semblante-real, a defesa primária para cada um. Abalar a defesa é, de alguma maneira, sustentar essa hiância. E a resistência é uma das possíveis respostas do sujeito em análise, do falasser, à esta defesa perturbada.
É que, havendo algo que as distingue, defesa e resistência, há neste cotejamento uma convergência: ambas interessam ao analista, são próprias da psicanálise, de um processo analítico, do fazer do psicanalista no que tange especificamente à não-relação semblante/real, a não relação sexual.
Fazer do analista
O que faz um analista? Cala, visando um cálculo: fazer falar, incluindo os interstícios, os silêncios. A fala, da qual algum dizer às vezes comparece, é uma prerrogativa necessária a que os discursos girem e o discurso analítico se instale, condição para que, no movimento associativo, a defesa insurja do (des) encontro semblante/real. A resistência funcionaria, então, como um índice, assim como a transferência negativa: a resistência e transferência negativa estariam do mesmo lado nessa lógica, funcionando como indicadores para o analista, de que há efeitos de perturbação da defesa.
É o que faz o analista, se cala e escuta o falar, o dizer, a incompatibilidade quando algo do simbólico acessa o real, produzindo estranhezas. É que os estranhamentos e mal-estares podem ser tomados como indicadores de abalo.
Isolar o significante ainda, após a virgula, em referência ao título “mais, ainda” [7] foi inevitável. Ainda, na tradução para o português, se refere a palavra encore no francês: isso que itera, repete na materialidade do corpo. De novo, outra vez, mais uma vez acontece. E o que pode emergir de novo nessa perturbação da defesa? Em de novo há algo que se repete, que itera, um novo que pode ou não se configurar, numa distinção, numa falta localizada, num silêncio, inclusive num nada. “(…) perturbar a defesa dita primária é ir além do inconsciente transferencial e seu trabalho de cifração de sentido, é mirar o que chamamos de ‘real do gozo” [8].
Mas nem só de perturbar a defesa se faz uma análise. A análise não é feita, se faz, não apenas da clínica cunhada sob a insígnia ultimíssimo Lacan, não apenas de ato analítico. As questões provocativas apresentadas ressoam [9]: há que se tomar um tempo inicial para a construção de alguma borda, situar um dentro e fora, e, então, só depois perturbar a defesa? Ou seria essa própria construção inicial um efeito de uma perturbação da defesa, efeito do encontro com um analista? Estabelecer coordenadas simbólicas, seria avesso de perturbar a defesa?
É que há psicanálise quando há psicanalista e, e somente e, quando há psicanalisante. Com que elementos conta o analista a lhe indicar que há/houve alguma aceitação por parte do analisante quanto a aceitar receber deste algo?
Tarrab [10] nos lega umas pistas, o ato vai assim “[…] mais além da interpretação e da decifração de diferentes maneiras: localizar, assinalar, cingir, circunscrever, constatar”. Corte e sutura estão correlatos a ler e escrever. Desse modo, a partir da leitura de gozo no corpo, o analista labora, também e não somente, com o corte ali onde os significantes se articulam. Poderíamos, no entanto, compreender a interpretação analítica, incluindo em seu fazer algumas operações: localizar, assinalar, cingir, circunscrever, constatar, cortar, suturar.
Miller [11] distingue duas modalidades de interpretação: em sua relação com o sentido – diante do lapso, ato falho – com efeito de verdade, contrariando o sentido anterior; assinalando o equívoco, num (des)encadeamento de sentido que tende ao infinito, orientado pela clínica do inconsciente estruturado como linguagem, do inconsciente transferencial; e uma terceira modalidade de interpretação que inclui embrenhar-se pelo via do impossível, em direção ao que limita, corta, contém. Ou seja, as interpretações servem ao labor analítico, as que escandem, ampliam, na vertente do equívoco, quanto a que reduz ao isso quer dizer nada, que esvazia. As modalidades de interpretação operam contando com algo mobilizado do corpo próprio do analista, um tom, uma voz, um sotaque, um gesto posto, um silêncio…