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FENÔMENOS ELEMENTARES E DELÍRIO: RELAÇÕES E DISTINÇÕES

 

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Olenice Amorim Gonçalves (Núcleo de Apresentação de Pacientes e Psicose)

No percurso realizado ao longo do segundo semestre do ano de 2022, esta foi a questão que norteou a trilha das leituras e da pesquisa nas atividades do Núcleo de Apresentação de Pacientes e Psicose da CLIPP.

Partimos da proposição das coordenadoras Marizilda Paulino e Perpétua Medrado Gonçalves, tomando o delírio como um discurso articulado, a partir do ensino de Lacan. O delírio foi abordado como “uma combinação de elementos onde a intenção de situar o fenômeno elementar assume um valor, um sentido: destacar no conjunto do discurso delirante os elementos mínimos, os elementos primeiros a partir dos quais foi construído, desenvolvido e elaborado o resto.” (1) A fim de situar na clínica das psicoses suas “manifestações discretas”: “a transferência, o cotidiano da clínica, o desencadeamento, a busca dos elementos mínimos, os detalhes para fazer o diagnóstico” (1).

Numa perspectiva da orientação lacaniana, e privados de contar com a apresentação de pacientes presentes, continuamos com as discussões de casos de “Apresentação de Pacientes” anteriormente realizadas, tanto por Lacan, quanto por outros membros da AMP. Esta abordagem nos possibilitou manter e reforçar como bússola a importância da “Apresentação de Pacientes” para a formação do psicanalista, considerando as questões diagnósticas na orientação do tratamento, que nos chegam à luz dos casos clínicos anteriormente publicados.

O programa se inicia intitulado por Um convite à Conversação e a Discussão de Caso, (1) e contemplou: Comentário de um fragmento de “Puntuaciónes psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito autobiograficamente” (2); “De uma comprensión al rigor de uma lógica de la estructura” (3); “Fenómenos elementales y delírio en la tesis doctoral de Jacques Lacan” (4); o Caso clínico de Jean-Daniel Matet: Yo era el hombre de un padre (5); e o O caso de Mademoiselle B (caso de Apresentação de Paciente de Lacan).

Em El saber delirante (3), no texto Fenômenos elementares e delírio na tese de doutorado de Jacques Lacan, Roberto Cueva (4) apoia-se na tese de Lacan de 1932 (6), partindo da análise dos fenômenos elementares tal como se apresentam no delírio de Aimée, para peneirar a articulação entre os fenômenos elementares e o delírio. Segundo a abordagem clássica, na revisão feita por Lacan, os fenômenos elementares são tomados como sintomas que expressariam os fatores determinantes do delírio. Assim, fenômenos elementares seriam primários e o delírio se constituiria como reações afetivas secundárias e deduções relacionais. Esta abordagem toma o delírio como consequência da interpretação decorrente de mecanismos do pensamento, um desenvolvimento lógico a partir de premissas falsas.

Em sua tese de 1932, Lacan propõe, em oposição a esta abordagem clássica, que a interpretação delirante e o fenômeno elementar têm a mesma característica no que tange ao mecanismo gerador do delírio; e ainda que estas interpretações são múltiplas, extensivas e repetidas. No que se refere à fixação e organização do delírio em sua relação com os fenômenos elementares, Cueva apresenta o que Lacan alcançou naquele momento no final do capítulo três de sua tese de 1932: “a permanência do conflito (vital de natureza ético-sexual que expressam de maneira simbólica), a qual se referem os acontecimentos traumáticos, certamente explica a permanência e o aumento do delírio, tanto melhor quanto seus próprios sintomas parecem refletir a estrutura desse conflito” (7). Quanto ao delírio, apresenta que as formas do pensamento paranoico, que organizam as ideias delirantes, impõem sua estrutura conceitual ao sistema do delírio e se expressam em quatro princípios: clareza/claridade significativa dos conteúdos do delírio; impressão lógica e espaço-temporal no desenvolvimento do delírio; valor de realidade dos temas delirantes (relação com o conflito inconsciente e a ausência de encadeamento lógico), e identificação iterativa.

Cueva conclui que na tese de 1932, Lacan atribui ao delírio a estrutura de um fenômeno elementar. E segue com a questão: “tudo no delírio é fenômeno elementar?” (8)

Claudio Godoy (8) acrescenta em Automatismo, fenômeno elementar e delírio, uma abordagem estrutural na relação fenômeno elementar e delírio, denominada “As nervuras da folha” a partir da tese de Lacan desde 1932: haveria a “mesma força estruturante” na composição do delírio e do fenômeno elementar, ou seja, uma estrutura análoga, como se observa nas nervuras das plantas e em sua totalidade. Não se trata de somatória, ou relação parte-todo. A proposta é a de uma configuração complexa na qual a estrutura se presentifica em todo e qualquer componente da planta, por ínfimo que seja. Trata-se de um índice de estrutura.

A partir da “perspectiva das leis da palavra e o reconhecimento”, Lacan é levado a pensar a estrutura psicótica pela exclusão do dito Outro, o que se distingue do predomínio outorgado ao Outro da linguagem em “De uma questão preliminar…” (9). Ali os fenômenos seriam localizados pelo texto das alucinações schreberianas, como fenômenos de mensagem e de códigos. Pela linguagem, esta perspectiva confere uma identidade estrutural do fenômeno elementar e o delírio pela via do significante e dos efeitos de significação na psicose. Éric Laurent, ainda segundo Godoy (8), esclarece então que “não quer dizer que entre alguém que tem fenômenos latentes que permanecem limitados durante anos, e um delírio completamente desdobrado/destacado, se trate da mesma coisa. Isso quer dizer que é exatamente a mesma coisa do ponto de vista da estrutura de sentido.” (10)

Jacques-Alain Miller (11) salienta que o termo fenômeno elementar não está em Freud, mas pode ser localizado a partir da leitura que Lacan faz de Freud. E, ainda, que um fenômeno elementar é um fato clínico. Para Miller, a diferença entre delírio e fenômeno elementar se marca pelo fenômeno elementar estar presente no delírio, localizável por uma “mudança de atmosfera”, um sentimento de inquietude. E acrescenta que Cueva descobre que, ao contrário do que sustentou Lacan em sua tese, os fenômenos elementares explicam em certo sentido a organização do delírio. Enigma, perplexidade e certeza são momentos distintos.

Em nossos estudos no Núcleo encontramos, além disso, uma orientação preciosa, rumo ao próximo Congresso da AMP. Ao encerrar seus comentários, Miller (12) aponta: “Com efeito, há esse elemento suplementar que é pensar que aquilo que o sujeito descobre no Egito foi escrito por causa dele. Não é tão distinto das conversações que tem Aimée nas quais diz “eles falam de mim”; é como pensar que o obelisco tem um texto que finalmente fala dele e o fenômeno é isso que há na frase. A significação pessoal é efetivamente isso fala de mim, é o isso inicial. Nesse sentido, Lacan assinala que há um tipo de paranoia primitiva em todo sujeito enquanto o significante o precede. O sujeito está fundamentalmente ante um fenômeno elementar, e, nesta linha, todos somos loucos”.

REFERÊNCIAS:

1. Paulino, Marizilda e Gonçalves, Perpétua Medrado. Programa do Núcleo de Apresentação de Pacientes e Psicose da CLIPP. [https://clipp.org.br/ensino/nucleos-de-pesquisa/] São Paulo : CLIPP – Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Pscanálise, 2022.

2. Freud, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia paranoides) (1911) ] Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago, 1980, Vol. XII, pp. 94-95 (fragmento escolhido).

3. Miller, Jacques-Alain. El saber delirante. Buenos Aires : Paidós, 2005.

4. Cueva, Roberto. Fenómenos elementales y delirio en la tesis doctoral de Jacques Lacan. [A. do livro] Jacques-Alain Miller e y otros. El saber delirante. Buenos Aires : Paidós, 2005, pp. 35-39. Livre tradução pela autora.

5. Miller, Jacques-Alain. Cuando el Outro es malo…. Buenos Aires : Paidós, 2011.

6. Lacan, Jacques. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense-. Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1987.

7. Cueva, Roberto. Fenómenos elementales y delirio en la tesis doctoral de Jacques Lacan. [A. do livro] Jacques-Alain Miller e y otros. El saber delirante. Buenos Aires : Paidós, 2005, p. 39.

8. Godoy, Claudio. Automatismo, fenómeno elemental y delirio. [A. do livro] Jacques-Alain Miller e y otros. El saber delirante. Buenos Aires : Paidós, 2005, pp. 49-56. Livre tradução pela autora.

9. Lacan, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. [trad.] Vera Ribeiro. Escritos. Rio de Janeiro : Zahar, 1998 (1907-1981) , pp. 537-590.

10. Laurent, Éric. El analiticón. Barcelona : Correo/Paradiso, 1987. Vol. 4, p. 47.

11. Miller, Jacques-Alain. Discusión. [A. do livro] Jacques-Alain Miller e y otros. El saber delirante. Buenos Aires : Paidós, 2005, pp. 59-77. Livre tradução realizada pela autora.

12. —. Discusión. [A. do livro] Jacques-Alain Miller e y otros. El saber delirante. Buenos Aires : Paidós, 2005, p. 74. Livre tradução pela autora.