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Fluctuat nec mergitur

Sandra Arruda Grostein

 

Introdução

 

Falar sobre a experiência freudiana dentro do contexto destas jornadas, onde o tema a ser discutido é o da transmissão da psicanálise me colocou a seguinte questão:

 

Em que medida a experiência freudiana foi bem sucedida?

 

Entendendo aqui, a experiência como as várias tentativas feitas por Freud de compartilhar a psicanálise com outros. Desde Fliess, seu primeiro “Publicum” (1897) à IPA International Psychoanalytical Association, onde até hoje encontramos aqueles que se consideram seus interlocutores e herdeiros legítimos.

 

Freud viveu momentos de profundo isolamento no início de sua teorização, provavelmente por causa disso procurou sempre alertar que “o analista não deve ficar isolado mas, ao contrário, deve procurar se associar com outros analistas e com eles estabelecer trocas de idéias e experiências”.

 

No início, com as famosas reuniões das quartas-feiras temos de um lado um grupo de homens em busca de idéias novas e de um líder e de outro lado um homem solitário, que havia feito importantes descobrimentos e desejava compartilhá-los com outros. E a nossa questão reside exatamente aí, como passar de um lado a outro, isto que foi descoberto.

 

Como é possível ser psicanalista ?

 

Até que ponto é pode-se “inventar” em psicanálise ? Qual é o grau de liberdade que a teoria psicanalítica tem oferecido para novos desenvolvimentos ?

 

Enquanto Freud era vivo, cabia a ele a autorização de quem era e de quem não era psicanalista e o reconhecimento do que era e do que não era psicanálise. Esta responsabilidade Freud deixou para a IPA para quando ele não mais estivesse aqui para exercê-la.

 

Duas questões se colocam aqui como um desdobramento da questão central se a experiência freudiana foi bem sucedida:

1-Em que a IPA fracassou?

2-Porque a psicanálise sobreviveu apesar da IPA?

Neste texto vou tentar apresentar o caminho percorrido para formular algumas destas questões e possíveis respostas.

 

 

Desenvolvimento

 

Fluctuat Nec Mergitur

 

Esta é a frase que se encontra gravada nos escudos de armas da cidade de Paris, Freud a utiliza em pelo menos três contextos diferentes. Em duas cartas a Fliess e como epígrafe do texto História do Movimento Psicanalítico.

 

Quer dizer: Flutua não se submerge

 

Ou ainda numa livre interpretação: Resiste.

 

Resiste a ataques internos ataques externos que a psicanálise sofre.

 

Ela resiste! Flutuact!

 

Nas cartas a Fliess, mais precisamente em 21/9/99, carta 119 e em 8/5/01 carta 143, Freud cita esta frase em momentos onde quase como um desabafo, conta a seu interlocutor os maus pedaços em que vem passando por insistir em sua pesquisa com o Inconsciente.

 

Quinze anos depois, ao escrever a História do Movimento Psicanalítico, em 1914, escolhe esta frase como epígrafe. É sem dúvida uma marca nessa história – aquilo que resiste.

 

Retomo aqui alguns importantes fatos históricos. Uso para tanto dois grandes biógrafos de Freud, Ernest Jones e Peter Gay, e naturalmente o próprio Freud.

 

Com o decorrer dos anos lançou-se o que foi chamado de “Movimento psicanalítico”, expressão empregada tanto por amigos quanto por inimigos. Foram anos penosos (1910-1914) para Freud, segundo Jones, e foi no decorrer deles que ele, olhando para trás, vendo o que lhe parecia então, através de óculos róseos, os anos serenos do “esplêndido isolamento”. O prazer do sucesso e do reconhecimento crescente era muito prejudicado pelos sinistros sinais de crescente dissensão entre valiosos adeptos. Freud ficou imensamente perturbado e também aturdido com os insolúveis problemas a que isso deu origem e pela perplexidade de ter de enfrentá-los.

 

A difusão gradual das idéias psicanalíticas e o crescente número de praticantes da psicanálise levaram Freud a propor um grupo maior com uma organização tal que pudesse responder e zelar pelo nome da psicanálise.

 

É da seguinte maneira que ele justifica a IPA:

 

“Acreditava necessário dar ao núcleo psicanalítico a forma de uma associação oficial para evitar os abusos que sabíamos que iriam cometer em nome da psicanálise quando esta adquirisse certa popularidade. Devia existir então uma organização revestida de autoridade suficiente para delimitar o campo de nossa disciplina e declarar alheio a ela os abusos. Nas reuniões de grupos locais que comporiam a associação internacional se ensinaria a prática da psicanálise e os médicos que queiram exercê-la poderiam seguir assim uma preparação, ficando garantido em certo modo sua atividade posterior.

 

Também me parecia conveniente que os partidários da psicanálise pudessem tratar-se e apoiar-se mutuamente no seio de uma associação toda vez que a ciência oficial oponha seu veto à nossa disciplina, declarando o boicote aos médicos e aos estabelecimentos que pratiquem a psicanálise”. (História do movimento 1914)

 

Além disso, Freud também diz: “Nem para mim nem para meus colaboradores nos parece interessante monopolizar uma técnica médica. Mas ante ao perigo que pode trazer consigo tanto para a nossa causa quanto para os enfermos o exercício de uma psicanálise selvagem; na primavera de 1910 fundamos a IPA – International Psychoanalytical Association que publica os nomes de seus membros, com o objetivo de poder se desresponsabilizar da ação daqueles que não pertencem ao nosso grupo, e dão à sua prática o nome de psicanálise. Na verdade esses psicanalistas selvagens prejudicam mais a nossa causa que os próprios enfermos”.

 

Porém, além dos psicanalistas selvagens Freud tinha que também administrar a animosidade crescente entre os grupos de Viena e Zurique e a distribuição de cargos nessa Associação foi uma saída possível, como ele deixa claro numa carta a Ferenczi logo após o congresso de Nuremberg:

 

“Agora os acontecimentos caminharão. Vi que é o momento para levar a cabo a decisão que há muito tenho em mente. Abandonarei a liderança do grupo de Viena e deixarei de exercer qualquer influência oficial. Transferirei a liderança para Adler, não que eu goste disso ou me sinta satisfeito, mas porque ele é aí a única personalidade e porque nesse cargo ele se sentirá na obrigação de defender nosso terreno comum…”

Jung, como todos sabem, foi o primeiro presidente da IPA, nesta mesma carta ele continua: “Passei um dia muito agradável com Jung ele está no auge da forma e devemos esperar que dê provas de si mesmo… As relações pessoais entre os membros de Zurique são muito mais satisfatórias do que em Viena, onde com freqüência temos de nos perguntar o que foi feito da influência enobrecedora da psicanálise sobre os seus seguidores. Com o Reichstag de Nuremberg encerra-se a infância de nosso movimento. Espero agora por um rico e promissor período de juventude”.. Ledo engano!

 

Poderíamos dizer que o que caracterizou os anos seguintes foram as crises, pondo inclusive em questão a existência ou não da IPA, ou seja, a sua dissolução. Essa crise se resolveu com os afastamentos primeiro de Adler seguido por Jung. Afastamentos em relação ao grupo e conseqüentemente em relação à psicanálise.

 

Freud descreveu assim estas rupturas: “Durante os anos de 1911 e 1913 separaram-se do movimento dois antigos aderentes Adler e Jung, fundaram suas Escolas próprias, que foram bem recebidas pela corrente geral de hostilidade à psicanálise, mas cientificamente se tornaram estéreis”.

 

É possível falar em situação e em oposição em psicanálise?

 

Parece-me que não; Jung e Adler se associaram a correntes hostis à psicanálise e deixaram de fazer psicanálise.

 

Para evitar que novas dissensões como estas ocorressem foi criado a partir de uma sugestão de Jones um Comitê Secreto, cujo compromisso era o de discutir internamente suas dúvidas, questões, avanços, críticas e etc. em relação à teoria e à técnica psicanalítica.

 

Freud assim o descreveu (Jones, pg. 162 livro 2):

 

“Ouso afirmar que a vida e a morte me seriam mais fáceis se eu soubesse da existência dessa associação para velar por minha criação. Em primeiro lugar esse Comitê teria de ser estritamente secreto em sua existência e em suas ações (…) o melhor para mim é ser deixado fora de suas condições e compromissos para estar certo de que guardarei o mais profundo segredo e serei grato por tudo que me comunicarem. Seja o que o tempo vindouro trouxer, o futuro mestre do movimento psicanalítico pode sair deste pequeno mas seleto grupo, no qual estou pronto a confiar, apesar de minhas ultimas decepções com os homens”.

 

Inicia-se a burocratização, comitê secreto, análise didática, fortalecimento cada vez maior do grupo enquanto Instituição, numa busca desenfreada do reconhecimento da comunidade médica. Em Londres, por exemplo, Jones propunha a cada um que quisesse fazer parte da Sociedade Britânica de Psicanálise, que antes fizesse o curso de medicina. Não era um pré-requisito, mas desejável. (The Freud Klein Controversies 1941-1945)

 

Nos anos imediatamente seguintes à morte de Freud o mundo está em pé de guerra, na psicanálise ocorria em Londres, no interior da Sociedade Britânica, uma disputa entre o grupo de Viena e o grupo de Londres, se repetia de uma certa forma algo vivido no passado entre Viena e Zurique.

 

Desta feita tínhamos de um lado Anna Freud, “a verdadeira filha de um pai imortal” representando o grupo vienense e de outro Melanie Klein do lado dos londrinos.

 

A questão que divide estes dois grupos são novos conceitos introduzidos por M. Klein à teoria psicanalítica e as conseqüências destes na prática e na formação de novos analistas.

 

Estas divergências ficaram conhecidas como Controvérsia entre Freud e Klein 1941/1945, que além de pôr em questão as divergências teóricas também propunham uma total reformulação nas estruturas de poder dentro da Sociedade, em relação ao Instituto, ao Comitê dos Didatas, nas publicações e etc…

 

Algo muito próximo disto se repete na França nos anos 50, com Lacan. Em cada uma destas crises, na falta de uma articulação dos conceitos freudianos, a IPA caminhava cada vez mais na direção da padronização. Em 1964 Lacan rompe definitivamente com a IPA, restitui o caminho para a psicanálise, só que desta vez fora da Associação.

 

Conclusão

 

Podemos concluir, então, que a experiência freudiana fracassou com a IPA, em seu propósito de continuar formando analistas com a particularidade e a virulência que a psicanálise supõe. Ao invés disso se presta a formar profissionais perfeitamente adequados ao status quo. Como prevê o seu código de Ética de novembro de 1991:

 

Artigo 1:

O principal objetivo profissional do psicanalista é o de oferecer ajuda aos pacientes através da teoria e da técnica psicanalítica. O tratamento é conduzido com total respeito pela dignidade do ser humano como indivíduo.

 

Ou ainda; num outro artigo; “Ao aceitar o código de conduta ética e profissional, o psicanalista tem a responsabilidade não somente de seguir  estes padrões mas também de avisar sobre comportamento anti-profissional de outros analistas de acordo com os procedimentos adequados a sua filiação”.

 

Fluctuat nec Mergitur

 

A experiência freudiana foi bem sucedida com a IPA até 64 no sentido de manter vivo o texto de Freud, de fazer circular seus significantes. Lacan não cansava de denunciar os desvios que as novas teorias vinham fazendo em relação à psicanálise, de uma certa forma Lacan tomou para si a responsabilidade que Freud legou para a IPA.

 

A transmissão da psicanálise se processa principalmente porque o que se transmite é aquilo que não é passível de significação, isto é, foi a pura presença dos conceitos e não sua significação que manteve o movimento da psicanálise.

 

Este grande corpo de significantes estava sustentado por Freud mesmo depois de morto. No final do texto “A Situação da Psicanálise e a Formação do Psicanalista em 1956”, Lacan neste contexto propõe “que a vida consegue prolongar seu gozo na prorrogação de seu apodrecimento”.

 

Como basta a esse gozo, ele funda a Escola dando àquilo que é transmissível um lugar possível de articulação, a saber – o matema.

 

Deixando fluctuat o real e permitindo submergir Freud morto.

 

 

Bibliografia

 

Freud, S. História del Movimiento Psicanalitico, Obras Completas,  Biblioteca Nueva Terceira Edition

Freud, S. Los Caminos de la Terapia Psicoanalitica, idem

Gay, P. Freud Uma Vida para nosso tempo, Ed. Companhia das Letras.

Jones, E. A vida e a Obra de Sigmund Freud, Imago

King, P. e Steiner, R. – The Freud-Kein Controversies 1941-45 The New Library of Psychoanalysis.

Lacan, J. Situação da Psicanálise e Formação do Psicanalista em 1956, Escritos, Ed. Perspectiva

 

 

 

Trabalho apresentado na Jornada Brasileira do Campo Freudiano

28 de julho de 1992