
Huguette Duflos
Carlos Ferraz Batista (CLIPP)
A tese de doutorado de Jacques Lacan, centrada no caso Aimée, oferece uma incursão valiosa ao seu pensamento pré-psicanalítico. Nela, Lacan explora a intrincada relação entre o sujeito e a cultura, com foco nas manifestações do sofrimento humano, notadamente a paranoia e o crime. Embora essa articulação se manifeste na realidade social, é fundamental evitar a generalização da psicose como causa onipresente da criminalidade. Este trabalho dedica-se a analisar, através da lente da tese lacaniana, uma outra forma de expressão e leitura da subjetividade: o conceito de desejo de autopunição, como a pedra angular desta reflexão. Abordaremos também o sentimento de culpa, a intrínseca relação do sujeito com o social e a incidência da vergonha. Para tanto, revisitaremos a história da paciente Aimée, com o objetivo de investigar a hipótese de que o desejo de autopunição pode operar como não somente um vetor da dor psíquica, mas também como uma tentativa de inscrição, por meio da sanção social.
Aimée, mulher com aspirações literárias, carregava o peso de eventos traumáticos da infância, como o testemunho da morte da irmã. Posteriormente, após o nascimento de seu filho, desenvolveu um quadro de delírio persecutório, marcado pelo temor de que o assassinassem. Esse delírio se estendeu a uma atriz famosa, reconhecida por Aimée como figura central em seu universo delirante.
Em um episódio marcante, Aimée atacou essa atriz com uma faca na saída de um teatro, no momento em que ela interagia com seus admiradores. Presa e com a subsequente dissolução de seu delírio, Aimée mostrou-se incapaz de explicar a motivação de seu ato.
O conceito de desejo de autopunição emergiu da observação de Lacan de que, após o ataque e a consequente prisão, Aimée experimentou uma significativa atenuação de seus delírios persecutórios. Essa remissão conduziu Lacan à teorização de que o ato criminoso em si funcionou como uma forma de autopunição para um conflito psíquico interno preexistente. Em outras palavras, Aimée teria perpetrado o ataque à atriz para obter a punição que, inconscientemente, sentia merecer.
Essa perspectiva lacaniana desafiou a compreensão tradicional da paranoia, que usualmente enfatiza a projeção da agressividade para o exterior. Lacan, em contraste, destacou como, neste caso específico, a agressividade se voltou contra o próprio sujeito através do ato violento e da sanção legal imposta pela sociedade. Ao golpear a atriz, Aimée atingiu seu duplo, golpeou a si mesma. Lacan corrobora essa explanação ao afirmar: “Aimée atinge, […] em sua vítima seu ideal exteriorizado […]. Mas o objeto que Aimée atinge só tem um valor de puro simbólico […]”.[1]
Retomando a análise do caso Aimée na articulação entre o subjetivo e o social, observa-se que a sanção externa – manifesta na perda da liberdade e nos efeitos da punição e de vergonha social – paradoxalmente, pôde representar para Aimée uma forma de alívio de seus delírios e do sentimento de culpa. Esse processo de “cura” ocorreria através da ratificação social da transgressão e da internalização dessa reprovação, que encontra ressonância em uma instância crítica interna fragilizada. Lacan complementa:
“A análise de suas correlações subjetivas ou objetivas permite demonstrar que esses mecanismos têm uma gênese social, e é isso que exprime o termo autopunição pelo qual são designados ou o de sentimentos de culpa que representa a sua atitude subjetiva”.[2]
Lacan enfatiza o papel crucial da vergonha nesse processo. A capacidade de experimentar vergonha pressupõe a existência de honra, de um laço social internalizado. A reprovação externa, ao encontrar eco em um núcleo subjetivo capaz de reconhecer a falha em relação a um ideal compartilhado, pode promover uma reorganização psíquica. Contudo, a tese de Lacan também revela uma tensão importante: embora reconheça o potencial da aplicação da sanção social, o autor não se mostra favorável à prisão como um sistema capaz de promover a ressignificação dos atos e o restabelecimento da subjetividade. Lacan em seus Escritos acentua: “se a psicanálise irrealiza o crime, ela não desumaniza o criminoso.” [3]
Para ele, o ambiente carcerário, com sua lógica de exclusão e desumanização, dificilmente oferece as condições necessárias para que o sujeito possa reelaborar seu delírio e construir novas formas de laço social.
Mesmo em sua fase inicial, a tese de Lacan prenuncia uma mudança em sua concepção do inconsciente e da relação do sujeito com o social. Diferentemente da ênfase freudiana nas profundezas intrapsíquicas, Lacan demonstra sensibilidade para a dimensão intersubjetiva e para o papel fundamental da linguagem na constituição do psiquismo.
A busca por uma contenção externa, pode ser interpretada como um embrião de suas futuras elaborações, antecipando a noção de um Inconsciente estruturado como uma linguagem, privilegiando o simbólico e englobando a dialética do desejo e da demanda, da alienação e da separação.
Em conclusão, o caso Aimée, analisado na tese de Lacan, lança luz sobre o conceito de desejo de autopunição e oferece uma compreensão complexa e instigante do ato criminoso. Ao desviar de explicações simplistas, a análise aprofunda-se nas intrincadas relações entre o psiquismo e o Outro social. A perspectiva de Lacan realça como, em certos casos, o crime pode emergir não como uma transgressão primária, mas como uma tentativa desesperada de encontrar uma contenção externa para pulsões avassaladoras, revelando a intrínseca ligação entre o sofrimento psíquico, o ato violento e a busca por punição. Contexto que poderá favorecer uma inscrição social, por meio da responsabilização do ato violento e do que excede ao sujeito. Em nossa incessante busca por reconhecimento social e uma identidade subjetiva coesa, a intrigante questão persiste: o conceito de desejo de autopunição, tal como explorado por Lacan no caso Aimée, ressoa ainda em nossa contemporaneidade, talvez manifestando-se sob novas roupagens nas complexas dinâmicas sociais e psíquicas atuais?