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LINGUAGEM MENTIROSA E A ORDEM SIMBÓLICA NO XXI

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri

O VIII Congresso da AMP foca um fenômeno que vem sendo detectado desde o final do Século XIX: “A Ordem Simbólica no Século XXI – não é mais o que era”. Isso leva os psicanalistas a se perguntarem sobre “quais as consequências para o tratamento?” Ao emergir, a psicanálise o fez num momento de crise simbólica, final do século XIX, começo do século XX.

A ideia de um simbólico incompleto, faltoso, aparece no pensamento ocidental desde seus inícios, mas de forma incipiente, como em Platão e o questionamento da linguagem em vários de seus diálogos. A obra nietzschiana faz uma clara denúncia da pretensão à verdade universal que toda linguagem possui, mas sendo a linguagem apenas mais uma das criações humanas, as mudanças fazem parte da estrutura mesma da linguagem.

Nietzsche, ao teorizar sobre a linguagem, aponta para os riscos que correria a humanidade ao desvelar-se o que Miller batizou como “delírio generalizado”: no momento em que a civilização ocidental leva sua racionalidade ao ápice, momento de queda de ideais, os humanos, perdendo suas referências, veem desencadear-se, brotar em todos os níveis, os efeitos que marcam a inexistência do Outro, o que é perigoso, muito perigoso, assim como viver (já o disse o velho e sempre bom Guimarães).

Partindo da análise que Nietzsche faz da linguagem, chega-se a que os seres humanos criam visões de mundo, delírios que tamponam o Real, o que o faz perguntar-se “Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito?” . Até onde manter os semblantes que tamponam a verdade, o que Nietzsche chama de verdade?

Para além das estruturas e sua possibilidade diagnóstica, Lacan faz uma afirmação, surpreendente a princípio: “todo mundo é louco, quer dizer, delirante” , mas que se coaduna à doutrina por ele desenvolvida no decorrer de seu ensino. Levando em conta o jogo entre o universal que ele identifica no “para todos” aristotélico, o particular que lhe permite fazer a distinção entre as “estruturas” e o singular com “a loucura de cada um”, o cálculo da clínica inclui necessariamente a questão: até onde desvelar as criações com as quais o sujeito se defende do Real?

Falamos e acreditamos na linguagem, somos, para além da psicose, “tolos do significante”.  Deliramos em função da “forclusão generalizada”, do furo simbólico estrutural ao ser humano, que ao falar acredita dar conta da totalidade do mundo, do seu mundo, ser falante que acredita na linguagem dizendo a verdade. Postular a verdade da linguagem colocaria o simbólico ao abrigo das mudanças, sendo patente o oposto.

O particular em lógica é a tentativa de capturar algo que se inscreve no universal, diferente do singular, que não encontra inscrição alguma dentro daquele. A universalidade da loucura liga-se à articulação significante; afinal, o significante nada significa, apenas liga-se a outro significante para representar o sujeito. Mas a frase mesma de Lacan, aforismática, remete a um paradoxo: o universal da loucura iguala-se ao singular do delírio, o próprio de cada um, para além do particular das estruturas clínicas.

O singular da “loucura de cada um” remete ao inconsciente, conhecido apenas por suas formações: sonho, lapso, chiste, ato falho. O sintoma, acrescido à lista, traz um elemento clínico, diz Miller , pois as formações anteriores não são motivo para tratamento, são emergências, enquanto o sintoma que se repete, insiste, causa sofrimento. Não se tem mais o sonho, como nos tempos áureos da Psicanálise, de que o sintoma possa ser resolvido de uma vez por todas por meio da decifração.

E por que não? O inconsciente é estruturado como uma linguagem e, se o simbólico é mutante, as formas de abordar o inconsciente também deverão sê-lo: a psicanálise que surge numa crise sem precedentes do simbólico, muda necessariamente com ele.

Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
Carta de São Paulo, 1 Ano XIX  – Maio-junho – 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, PP 366.Coleção Os Pensadores.São Paulo: Abril Cultural, 1978.

LACAN, Jacques. Transfert à Saint Denis? Ornicar?, nº 17-18, 1979, p. 278.

Jacques-Alain Miller, Todo mundo é louco. Curso da Orientação Lacaniana, 2007/2008.