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Motivos e efeitos dos crimes paranoicos

Ariel Bogochvol
Imagem: Instagram @ilonaschmidt_artist

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Da ultima vez [1], nos concentramos nos crimes paranoicos, supostamente cometidos por um governo paranoico. Com a ressalva de que tanto paranoicos como não-paranoicos cometem crimes e de que os crimes que imputamos a um governo paranoico podem ser cometidos por governos de outros estilos. O estilo paranoico tem, contudo, seus traços distintivos.

Infeliz coincidência que, no meio de uma pandemia mortífera, estejamos sob sua regência e experimentemos seus efeitos. Testemunhamos, ao vivo, os discursos, atos, ações, omissões de um governo que é simultaneamente um caso político, um caso clínico e um caso criminal. E que, sob todos os aspectos, é um caso extraordinário.

Do ponto de vista político, é um caso exemplar de implantação, num regime democrático, 30 anos após o fim de uma ditadura militar e em plena pós-modernidade, de um modelo de governo ultradireitista, de inspiração fascista, redivivo na figura mítica de Bolsonaro. Há experiências similares como a de Trump nos EUA e de V. Orbán na Hungria, mas a experiência brasileira é sui generis.         

Do ponto de vista clínico, acompanhamos uma ‘apresentação de pacientes’/ dia (no mínimo). A prática, comum entre médicos, psiquiatras e psicanalistas de orientação lacaniana, ocorre, no caso Bolsonaro, de forma espontânea, selvagem, fora do setting, transmitida para o Brasil e o mundo pelos meios de comunicação de massa e redes sociais. O caráter selvagem, fora do enquadre, exorbitante da ‘apresentação’, exposta em um auditório leigo e global, não diminui em nada seu valor clínico. As cenas do presidente exibindo a hidrocloroquina para o povo em êxtase e oferecendo-a para as emas do palácio são antológicas.

Do ponto de vista criminal, o governo e seus apoiadores são acusados por numerosos crimes. No STF, há três inquéritos que apuram, respectivamente, a disseminação de fake news e ameaças contra os ministros da Corte, violações à Constituição em atos de apoio a Bolsonaro (em especial o realizado no dia 19 de abril, que contou com a sua presença numa manifestação em que se defendia a intervenção militar e a edição de um novo AI5) e interferência política do presidente na Polícia Federal (instaurado após as denúncias de Sérgio Moro por ocasião de sua demissão do Ministério da Justiça).  No Tribunal de Justiça do Rio, corre o processo que investiga “rachadinhas” na Assembléia Legislativa do Rio tendo como alvos Flávio Bolsonaro e seu assessor Fabrício Queiroz. No TSE, há oito ações que tramitam contra a chapa Bolsonaro-Mourão por disparos em massa via WhatsApp, abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação. Além disso, há mais de 50 pedidos de abertura de processo de impeachment na câmara dos deputados por crimes de responsabilidade e, fora do país, há ações na Corte Interamericana de Direitos Humanos e no Tribunal Penal Internacional de Haia por genocídio.

Não é a toda hora que nos deparamos com um caso cujo sintoma – um sistema delirante – produz efeitos sanitários, políticos, econômicos, sociais, culturais, religiosos, ideológicos, judiciais no Brasil e no mundo. Em geral um sintoma produz efeitos mais modestos no sujeito e nos mais próximos. No caso, sendo o portador do sintoma um presidente da república e capaz de “sintomar” os aparelhos do estado, o sistema delirante e sua superestrutura ideológica tornaram-se bússolas do regime e se erigiram em ideário e base para a prática política de muitos. É um governo apoiado por 30%  da população brasileira, um caso de ‘folie a muitos’, de uma ‘folie de multidões’. Há um modo singular de imbricar os eixos fundamentais do sistema delirante – grandeza, perseguição, conspiração, missão, reforma, mística, negação, litigância, ciúme – num sistema doutrinário personalista, autoritário, militarista, nacionalista/entreguista, xenofóbico, populista, familiarista, dinástico, místico, religioso, conservador, anti-estabilishment, neo-liberal, negacionista, reacionário, discricionário e que fornece os fundamentos da ação política. Pode-se questionar a coerência interna deste sistema delirante e de sua superestrutura ideológica – há evidentes frouxidões – mas formam uma rede articulada de temas, discursos, argumentos, cosmovisões e de comportamentos correlatos. É um caso em que as dimensões psicopatológica/política/ideológica/criminológica se emaranham visceralmente.

Com todas as objeções que podem ser feitas defronte um diagnóstico baseado unicamente em ‘apresentações de pacientes selvagens’, o quadro psicopatológico parece corresponder à definição kraepeliniana da paranóia: desenvolvimento lento e insidioso de um sistema delirante duradouro, impossível de abalar, que cursa com completa conservação do discernimento ou clareza e ordem na associação do pensamento, da vontade e da ação. Diferente de outros casos clínicos de psicoses como Aimée, Schreber, Joyce, que produziram obras literárias e que interessam tão somente a especialistas, literatos, universitários, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, Bolsonaro produz, diuturnamente, uma obra política e seu work in progress interfere diretamente na vida e morte da população brasileira. Interessa todo mundo.

Os crimes imputados ao governo e seus apoiadores, com exceção da “rachadinha”, não são crimes comuns: crimes de responsabilidade, contra a ordem democrática, republicana, o estado de direito, a emergência sanitária, o direito à informação, a preservação da humanidade. São crimes que só podem ser praticados ou sustentados por quem ocupa um cargo de poder, um lugar extra-ordinário, simbólico/imaginário num sistema político e jurídico estruturado. O presidente deveria encarnar o semblante do cargo, exercê-lo com decoro e dignidade, submeter-se às leis e fazer cumprir as leis, mas porta-se ao avesso da lei. Os crimes de seu governo e de seus apoiadores podem ser categorizados como ‘crimes do simbólico’, contra o simbólico, em que não há um ataque direto ao corpo ou bens da vítima, mas aos fundamentos da Lei, à Lei como tal, encarnada na Constituição e em suas cláusulas pétreas. São crimes do simbólico, mas seus efeitos são simbólicos, imaginários e reais.

A hipótese metapsicológica é que pratique isso em função de sua peculiar relação com o A, i. é, por sua dificuldade de inserção no campo do Outro, da lei, do simbólico. Não houve um NP que tenha operado a instalação da lei no campo do Outro o que prejudica sua inserção no simbólico e seu acesso à significação. O discurso delirante opera uma modificação no campo da significação, sua fixação em determinados significados. E o mecanismo da retenção do S1 (verhaltung) e a identificação com o Um ordenador da cadeia faz com que o sujeito paranóico se localize como o único, o mestre, o Um que pode desafiar o Outro.

No caso Bolsonaro, o complexo delirante/ideológico é tosco, pueril, mas a ação política é concatenada e rigorosa. O governo Bolsonaro aparelhou todas as instituições do estado

e seu discurso se infiltrou nos órgãos de saúde, educação, universitários, de pesquisa, cultura, relações exteriores, meio ambiente, direitos humanos, redes sociais i. é, nos aparelhos ideológicos do estado. Como um engenheiro de demolição, Bolsonaro busca arrebentar a ‘velha ordem’ mesmo que se servindo dela e como um engenheiro de construção, busca construir uma ‘nova ordem’ revolucionária mesmo que reacionária. Até agora conseguiu de forma competente abalar, de variados modos, as estruturas do estado democrático de direito.

A mudança do comportamento litigante/desafiador/provocador para um modo paz/amor, observada no último mês, foi o resultado da intervenção mais ou menos concatenada do STF, do congresso, da ala militar e pragmática do governo, da sociedade civil e do savoir faire político de Bolsonaro diante do risco eminente de uma conflagração e ruptura institucionais. Mas é tão somente uma mudança de tática, sem modificação da estratégia e da política. Muito mais preocupante do que a pessoa de Bolsonaro – suas variações táticas ou de humor – são as consequências de sua monumental obra de demolição. Não é por acaso que o Brasil ocupa um desonroso segundo lugar no ranking mundial de casos e mortes por coronavirus. Parte dos mais de três milhões de infectados e dos mais de cem mil mortos sucumbiu à força de seus delírios.


[1] O artigo foi baseado em aula ministrada no curso on line “estudos sobre o crime” organizado pelo NEPPSI-CLIPP