Vera Lúcia Dias (CLIPP)
“Eu não digo a política é o inconsciente, mas simplesmente, o inconsciente é a política” ¹
Como referências para subsidiar o que chamo aqui de “Na trilha da Política Lacaniana” trago “O inconsciente é a política”², livro de Marie-Hélène Brousse publicado pela EBP-SP em 2003 e reeditado em 2018 e dois textos de Miller publicados na revista Opção Lacaniana em sua versão online, “Intuições Milanesas”³ e “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”4.
No pequeno percurso que faço por essas obras, começo por apresentar o trecho epigrafado, por tratar-se de uma proposição de Lacan sobre a qual Miller³ tece um longo comentário, do qual destaco aqui o seguinte. Lacan ao dizer, “Eu não digo (…)” (p.2), coloca no império da denegação a afirmação “(…) a política é o inconsciente”. E se explorarmos a introdução da segunda edição do livro de Marie-Hélène Brousse², vamos localizar também um breve comentário referente a preferência de Lacan pela asserção “o inconsciente é a política” (p.21).
Quanto a tal preferência, talvez possamos dizer, com Miller, que ela se deva à possibilidade de “O inconsciente é a política” ser uma afirmação mais modesta do que a primeira, uma vez que propõe uma definição do inconsciente e não da política (p.4). Nas palavras de Miller, na segunda proposição “podemos ao menos observar que se trata de uma fórmula da competência de um psicanalista, enquanto que a outra, que propõe uma definição da política, é certamente mais arriscada quando é enunciada por um psicanalista, cuja tarefa não é definir a política” (p.2).
Creio que de modo algum isso signifique que um psicanalista não deva interessar-se pela política, posto que à luz dos textos freudianos “Psicologia das massas”, “Mal-estar na civilização” e “Moisés e o Monoteísmo”, Freud, ao escrever sobre política, a remete ao inconsciente, como sublinha Miller (p.3-4). Não esquecendo também de que, um dos conceitos propostos por Lacan, é que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, ou seja, é o discurso do Outro.
Sobre a relação fundamental que o analista tem com a dimensão da política, Brousse recorta algumas referências do texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”5 (p. 322) sendo “alcançar em seu horizonte a subjetividade da época” uma delas. Aliás – para mostrar que em tal recorte, além de explicitar a relação fundamental do analista com a política, Lacan também apresenta uma definição do trabalho do analista – Brousse amplia a parte inicialmente marcada, assinalando na íntegra o trecho onde Lacan fala sobre o analista. Ela realça: “Que antes renuncie a isso, portanto, quem não alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico?” (p.28).
Algum tempo depois desta recomendação, mais precisamente na década seguinte, ao ser interpelado pela Associação Internacional de Psicanálise (IPA), Associação da qual ele participava e que o proibiu de exercer sua função de didata, Lacan funda uma escola própria nomeando-a de Escola Francesa de Psicanálise (EFP)6. E por mais que aquele movimento, o de fundar uma escola e não ceder à ditadura imposta por uma Associação identificada ao totalitarismo, pudesse parecer um confronto, Miller4 à época da inauguração da Escola Italiana, faz um importante esclarecimento a respeito de tal acontecimento. Diz que não foi desse lugar, isto é, do lugar do Ideal que insiste em opor o “Nós” a “Eles”, que Lacan enunciou sua Escola e sim, da posição do Ideal que consiste em enunciar interpretações (p.5-6). De acordo com Miller, modificar o sujeito em vias de realização, é uma propriedade qualificada de interpretação (p.2-3). Foi assim que, no momento de fundar a EFP – Escola que acabou por levar à fundação de outras (as atuais escolas lacanianas ligadas à AMP sendo a EBP uma delas), Lacan, ao dizer “só como sempre estive em minha relação com a causa analítica” mostrou a maneira pela qual ele avançou como fundador de uma formação coletiva (p.5). Ou seja, com um dizer, com uma interpretação.
Segundo Miller, Lacan “interpretou, decantou, formalizou, o salto que há entre a causa freudiana enquanto tal e a causa do desejo de Freud” (p.8). Explica que do desejo de Lacan procede uma Escola e não uma sociedade analítica como a que é procedente do desejo de Freud. Considera também que “o dispositivo significante necessário para subjetivar uma Escola, para fazer dela um sujeito suposto saber, tecido das solidões, que pensa e que responde”, é a democracia direta. Enfatiza ainda que esse significante, democracia direta, não se refere a uma prática anarquista (p.12).
Brousse² nos lembra que a palavra é o que está no fundamento da psicanálise desde a “talking cure” de Freud e que a experiência analítica revela esse poder: o poder da fala. Sendo assim, por estrutura, a democracia está ligada à fala (p.132), o que justifica, portanto, a manifestação política da EBP em favor da democracia nas últimas eleições em nosso país.
Referências:
1 – Lacan, J. (1966-67) O Seminário, livro 14. A lógica do fantasma. Seminário inédito.
2 – Brousse MH. O Inconsciente é a Política. 2ª. Ed. São Paulo: EBP. 2018.
3 – Miller, JA. (2002) Intuições Milanesas. Opção Lacaniana Online, Nova Série,
Ano 2, Nº 5. (p.3)
4 – Miller JA. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. In Opção Lacaniana online nova série Ano 7 • Número 21
5 – Lacan, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
6 – Lacan, J. (1964) Ato de fundação. In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, Ed., 2003. (p.235).