Carmen Silvia Cervelatti
Nesse texto pretendo retomar conceitos articuladores que, de alguma maneira, estão presentes em todo ensino de Lacan, porém centralizarei no Seminário XVII[1]. Com isso, pretendo oferecer mais um material de referência, sugerido por Marie-Hélène Brousse, para articular a frase de Lacan que nomeia o Seminário Internacional da EBP-SP “O inconsciente é a política”. Esse Seminário (1969-1970) tem como tema central o “aparelho” discurso: é aquilo que faz laço social. Evidentemente, essa formulação de laço social é de fundamental importância para a política.
A política abrange uma vasta gama de concepções: arte ou ciência de governar; orientação ou método político; conjunto de medidas para se alcançar um fim; conjunto de opiniões e/ou simpatias de uma pessoa com relação à arte ou ciência política, a uma doutrina ou ação política; cerimônia, cortesia, urbanidade; etc. Figurativamente ela significa: habilidade no relacionar-se com os outros tendo em vista a obtenção de resultados desejados; astúcia, maquiavelismo no processo de obtenção de alguma coisa.
Cada um dos quatro discursos propostos por Lacan (do mestre, universitário, do analista e histérico) envolve termos (significante-mestre, saber, sujeito dividido e objeto mais-de-gozar), lugares (agente, outro, produção e verdade) e no giro desses termos pelos diferentes lugares evidencia-se a impotência ou a impossibilidade.
Não fique doido por uma verdade, desconfie um pouco – é assim que Lacan adverte o analista em seu Avesso da psicanálise[2]. Para ele, algo de muito astuto fica evidente quando se trata do inconsciente, é a astúcia do raciocinador. Essa astúcia é diferente da astúcia da razão, aquela que Hegel, na Fenomenologia do espírito, ao analisar o desenvolvimento da cultura percebe o jogo das incidências e dos exercícios do espírito – isso faz laço social em discurso do mestre.
Em “Análise terminável e interminável”, Freud propôs que a relação analítica fosse fundada no amor à verdade e Lacan deu ênfase ao que escapa ao sentido, ao que ultrapassa tudo que é da ordem da verdade mas que evidencia algo de mais cru e duro – a pedra que sempre está no meio do caminho. Não é o amor que deve inspirar o analista, no que tange à verdade, disse Lacan. A verdade é impotente, ela faz ficar vagando em seus mortíferos labirintos – evidência da pulsão de morte freudiana. A razão dessa radical repetição é que existe algo que não permite que se possa chegar à verdade, por isso ela se traduz em impotência.
O real, ao se definir como o impossível, ele sim pode servir para medir o amor do psicanalista pela verdade e também aproximar das operações impossíveis: governar, educar, analisar e fazer desejar, para completar a série dos quatro discursos com o que cabe ao discurso da histérica, segundo Lacan. Ele continua, essas operações estão aí e é na medida em que existem é que elas se articulam como impossíveis.
“O impossível é o real”
Essa fórmula foi enunciada por Lacan nesse mesmo Seminário. Seus dois últimos capítulos foram dedicados a demonstrar “a impotência da verdade” e “o poder dos impossíveis”. “É no plano do impossível, como sabem, que defino o que é real. Se é real que haja o analista, isto se dá justamente porque é impossível.”[3]
Os impossíveis são recobertos pelo mais radical dos quatro discursos. Esse “aparelho”, essa “articulação significante domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem a palavra, que vem em seguida alojar-se neles”[4]. Em sua radicalidade, cada um deles (tomados enquanto semblantes determinados pelo lugar de agente) é um aparelho que governa a busca da verdade. Quando endereçada ao Outro, essa busca tem aparência de saber produzido pois o Outro é um lugar feito para que a verdade aí seja inscrita pelo jogo da linguagem e da fala. Lacan acrescenta que “o efeito de verdade é apenas uma queda de saber”[5], é somente isso que é produzido e nem ao menos um arranhão ou um respingo no real. “Em geral, ele se agita até a próxima crise. Seu benefício do momento é que recuperou seu verniz.”[6] O saber é um acréscimo ao real e não se importa com a verdade, quando não é falso.
A verdade está entre nós e o real, diz Lacan. A verdade é da ordem da impotência e o real, nesse momento do ensino lacaniano, é o impossível e também o elemento balizador para a atualidade da clínica psicanalítica.
Jacques-Alain Miller[7] ao analisar a subjetividade contemporânea em sua “paisagem apocalíptica” localiza que a psicanálise tem que convocar o real, trazê-lo à tona desprovido de sua proteção, desvestido de semblantes, já que é assim que se apresenta. “Não basta dizer que a verdade tem estrutura de ficção, pois estamos num ponto em que, doravante, a estrutura de ficção submergiu a verdade, em que ela a inclui, em que ela a engole. Sem dúvida, aí a verdade prospera, aí ela se multiplica, aí ela se pluraliza, mas ela está aí como morta. Diante desse envelhecimento ficcional da verdade é que se impõe o recurso ao real como não tendo estrutura de ficção.”
Ao convocar esse privilégio da psicanálise, em poder convocar o real para além do fascínio dos semblantes, estabelece a sua função e seu desafio. A inexistência do Outro, tão flagrante na época atual, “implica e explica a promoção do laço social no vazio que ela abre”[8].
Não fique doido pela verdade nem por ela se doa, muito menos se doe. Ela faz o analítico falhar porque, dessa maneira, o psicanalista ainda teria “contas a ajustar com seu ser”. Como instrumento, a verdade é traiçoeira. Precisamente, Lacan aponta que a impossibilidade não reside na função e sim no ser do analista.
Que faz um psicanalista? Ele sai disso entregando “o fio dessa verdade àquele que dela já tinha as chateações e que, nessa condição, torna-se verdadeiramente seu paciente, mediante o que não liga mais a mínima para ela.”[9]
Publicado na Carta de São Paulo,”O inconsciente é a política”, ano 9, no. 8