Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
“… Quem pode duvidar do fato de que, no século XXI, a psicanálise estará nas mãos das mulheres?” (Miller)
A civilização ocidental revela diferentes visões enfocando “mulher”. A sucessão interminável de males que assola a condição humana veio através da mulher, criada pelos deuses por ordens de Zeuscomo castigo para os homens. Deus, no “Velho Testamento”, cria o homem e tira dele uma costela, moldando-lhe uma companheira que, seduzida pela promessa do todo saber que lhe faz a serpente, é considerada desde então, vetor da queda do homem, do mal que o arranca do paraíso e o faz “comer o pão com o suor de seu rosto”. Com o advento do cristianismo a mãe de Deus será concebida sem pecado original e virgem, mesmo depois de dar à luz. O ideal de virgindade e pureza para as mulheres toma conta da humanidade, mas,no mesmo movimento em que surge a virgem, surge a outra, a prostituta, a degradada.
Os gregos vislumbravam uma mulher dividida, assustadora, perigosa; os judeus viam uma ambiciosa e passível de ser enganada e enganar; os cristãos,para encarar o insuportável, fazem a divisão em santas e prostitutas.Sedutora e inocente, ingênua e ambiciosa, a virgem imaculada faz surgir a outra. Mulher aparece enfim, em nossa civilização, como aquela plena de contradições, incompreensível.
Modelos incrustam-se no imaginário da humanidade desde os primórdios das civilizações e num mundo pós-tudo, os ideais de mulher se multiplicam. No entanto, diante de mitos e imagens as tentativas de enquadramento são infrutíferas. Miller vai dizer que “… o fenômeno mais profundo é a aspiração contemporânea à feminilidade” .
Como pensar o feminino, dasStrebennachWeiblichkeit, a aspiração à feminilidade no mundo de hoje, no qual as mulheres assumem postos de comando, exercem os “podres poderes” de que fala Caetano? Parece ainda haver dificuldades para nossa época se libertar dos mitos do “eterno feminino” como já observara Nietzsche.
No Seminário 20 Lacan apresenta as tábuas da sexuação e discorre sobre o matemaque ocupadesde então os psicanalistas, pois “quem quer que seja falante se inscreve de um lado ou de outro”. Do lado direito é permitido ao ser falante inscrever-se “…qualquer que ele seja, quer ele seja ou não provido dos atributos de masculinidade” e caso ele o faça, não haverá qualquer possibilidade de identificação, de inscrição universal,“será não-todo”.
Diante do postulado de Lacan, pode-se pensar o porquê de os mitos sobre o feminino se multiplicarem: preenchem um vazio de identificação, vazio d´A mulher que não existe, o que angustia os homens e… as mulheres.
Voltando a Miller, ele afirma que, na Psicanálise,existe para o sujeito a possibilidade de despir “sua fantasia fálica”, suas identificações e renunciar à “recusa da feminilidade que afeta o ser falante, não apenas o homem” . Portanto, se há uma aspiração contemporânea à feminilidade, não se pode tampouco ignorar a recusa da feminilidade. Nesse sentido, o poder nas mãos das mulheres pode não significar uma grande mudança em relação ao poder nas mãos dos homens, a menos que estas tenham se despido de suas fantasias fálicas… Basta olhar de perto as tábuas da sexuação.
Maria Bernadette Soares de Sant´AnaPitteri
*Publicado em “1por1” nº 139, outubro de 2011.