Marizilda Paulino*
Lacan na Abertura da Seção Clínica de Vincennes (1977), ao ser perguntado por Miller se “a clínica das neuroses e a clínica das psicoses necessitam das mesmas categorias, dos mesmos signos”, responde: “A paranoia, quero dizer, a psicose é para Freud absolutamente fundamental. A psicose é isso diante do que um analista não deve recuar em nenhum caso”.
Essa frase, quase um refrão para os lacanianos, faz questionar como entendê-la hoje e quais as elaborações que resultaram dessa orientação?
Convidamos Maria Silvia G. F. Hanna, EBP/AMP, para sustentar esse questionamento e Ariel Bogochvol, EBP/AMP/Associado da CLIPP, para os comentários, em uma atividade promovida pelo Núcleo de Pesquisa e Leitura sobre Apresentação de Pacientes e de Psicose da CLIPP. A Coordenação foi de Perpétua Medrado Gonçalves (CLIPP), coordenadora do Núcleo juntamente com Marizilda Paulino.
Maria Silvia diz que, mais do que um refrão, essa frase tornou-se marca de Jacques Lacan no campo da psicose e salienta que, para ela, o sentido já estava presente desde o seminário 3, As Psicoses.
Fazendo um retrospecto sobre o recuo diante da psicose, ela recorda a carta de Freud em 1928, para Istvan Hollos, médico-chefe da Casa-Amarela (asilo de Budapest), em resposta ao livro por este publicado e enviado a Freud sobre o trabalho ali realizado.
Freud desculpa-se pela demora na resposta, e confessa sua dificuldade em estar com esses doentes que “me dão raiva, irrito-me por senti-los tão longe de mim e de tudo o que é humano.” E pergunta-se “será que não estou me conduzindo como os médicos de outrora com relação às histéricas?”.
Miller chama a atenção sobre a raiva e a irritação de Freud conectando-as ao recalque – algo do não-querer-saber de Freud – que o impediu de ir adiante na clínica das psicoses.
Para Maria Silvia, aquilo que causa estranheza ao analista, o que não faz sentido, o que ele capta como violência contra si ou contra os outros, o pensamento fragmentado, o que questiona uma realidade coletiva e compartilhada, pode provocar um afastamento diante da psicose. E isso para ela “tem que ser considerado como parte da formação do analista, especialmente na situação da análise pessoal, lugar onde o sujeito pode saber um pouco mais desse não-querer-saber, que muitas vezes impede de caminhar nos casos que recebemos.”
Dois pontos importantes são a transferência e a interpretação nos casos de psicose.
A transferência, conceito desenvolvido por Freud como indispensável na condução de uma análise, pode ser também um obstáculo. O conceito de narcisismo introduzido por ele e a distinção entre a libido do eu e a libido do objeto, trouxe uma impossibilidade para o tratamento da psicose: segundo esse momento da teoria freudiana, na psicose haveria uma retração da libido do objeto para o eu, uma retirada do interesse e da ligação com os objetos do mundo externo, o que não permitiria que uma ligação transferencial ocorresse. Portanto, a psicose não seria passível de um tratamento.
Analistas depois de Freud estudaram a psicose e trataram seus doentes, observando que os psicóticos também desenvolvem uma transferência, embora diferente da dos neuróticos.
Maria Silvia aponta que Lacan utilizou outros suportes para entender o aparelho psíquico proposto por Freud – a linguística de Saussure e de Jakobson – e atribuiu a causa da psicose a uma falha no registro Simbólico, retomando a noção de Verwerfung postulada por Freud, e ressaltando a falta da inscrição do Nome-do-Pai (NP), sendo que o foracluído retornaria a partir do Real.
Em relação à interpretação, Freud escreve, em sua análise do Caso Schreber, que aí o Inconsciente não chama à interpretação. Os sintomas se interpretam.
O discurso do sujeito psicótico dá testemunho de um inconsciente a céu aberto, que não possibilita uma tradução e um movimento significante. As produções que ele faz – os delírios e as alucinações – podem fazer emergir o significante desencadeado no Real. E essa problemática do significante incide diretamente na interpretação, ele faz a sua própria interpretação. Maria Sílvia remete a um texto de Sandor Ferenczi, “Paranoia”, onde este diz que “o paranoico é o seu melhor intérprete”.
A cada sujeito, e nenhum psicótico se poupa disso, compete reatar a cadeia significante, para tentar habitar a linguagem. Lacan, a partir do seminário 11, faz um deslocamento do NP à função de nomear, o que vai possibilitar o tratamento. A função de nomear, a suplência, nos coloca a caminho da construção de um sinthoma que poderá manter enlaçado os três registros. Isso torna possível o tratamento para os sujeitos psicóticos que o demandem, e ao analista cabe apoiar e sustentar a tentativa de construção de um mecanismo necessário para manter enodados os três registros.
Concluindo, Maria Silvia recomenda: “a transferência na psicose carrega no seu âmago a posição de objeto do lado do psicótico, exigindo que o analista abra mão de qualquer tentação de interpretar, já que o intérprete é o próprio sujeito, com uma interpretação coagulada no caso de um delírio, de uma alucinação, cabendo ao analista apontar para a abertura de novas vias”. E mais, o analista deverá trabalhar respeitando a malha dos significantes e se apoiar naquilo que aparece como furado e que pode abrir novas cadeias durante o percurso. Além disso, o desejo do analista servirá para mapear junto com o analisante onde o significante se encadeia ou desencadeia, até encontrar um significante, um nome que possa servir de sinthoma e manter os três registros enlaçados.
Ariel em seus comentários faz uma explanação sobre os diversos quadros nosológicos em relação à psicose, e traz exemplos de sua prática clínica, acentuando que há casos onde é necessário recuar e em outros não.
Ele relembra que Freud fala que de alguma forma, é preciso recuar diante das psicoses, por qualquer que seja o motivo: razões teóricas, clínicas ou pessoais. Por outro lado, há esse imperativo de Lacan, de não recuar diante das psicoses, mas, ao mesmo tempo, ele salienta que Lacan, no seminário 3, diz que o analista precisa recuar diante de uma pré-psicose, pois o não recuo poderia produzir um quadro psicótico. Ou seja, não há um posicionamento único diante da psicose, é necessário pensar caso a caso.
“Se pensarmos no Discurso do Mestre: S1, S2, S/, a, podemos dizer que há um funcionamento, porém alterado. Há a foraclusão do NP, dificuldade em estabelecer a metáfora paterna e a entrada no mundo simbólico, que vai ordenar de alguma forma os registros do simbólico, do imaginário e do real.”
Um exemplo é o aparecimento de um neologismo em um esquizofrênico; o neologismo só remete a ele mesmo, não remete a um segundo significante. Na paranoia há um discurso delirante e temos um significante que remete sempre à mesma significação.
A questão é, como tratar psicanaliticamente a psicose?
A psicanálise pode prescindir da psiquiatria para tratar o sujeito psicótico? A paranoia seria mais facilmente tratável do que a esquizofrenia, do que a melancolia?
E quanto ao analista não recuar diante da psicose, envolveria uma questão pessoal do analisante? A análise levada até o seu final daria a possibilidade de não haver recuo diante da psicose? Como não recuar diante do não-querer-saber, diante do horror de saber?
É possível levar o tratamento do psicótico até a construção de um sinthoma?
Ao finalizar, Maria Silvia diz que Lacan ao final de seu artigo “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), fala sobre a importância da transferência e seu manejo no tratamento da psicose. Salienta, ainda, que deveríamos ouvir Lacan (não recuar diante da psicose) não como um imperativo, mas como uma recomendação e algo a pensar. O analista teria que ultrapassar o horror do que escuta para poder agir e aceitar que é o paciente que vai nos ensinar e nós é que vamos com ele.