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O MOVIMENTO PUNK E SUA RELAÇÃO COM A CÓLERA

Rosangela Carboni Castro Turim
                                     Psicanalista, Associada da CLIPP – Instituto da EBP-SP

 

Os movimentos inventados pelos jovens ao longo das décadas, normalmente contrários à ideologia dominante, investem em saídas ou pretendem responder a alguma indignação de acordo com seu tempo. A particularidade do movimento punk seria a resposta colérica, incluindo o ódio e a representação da pulsão de morte como expressão na música, na moda, na cultura.

punk como movimento musical e cultural surgiu em meados de 1974 como forma de expressão artística de jovens pobres, filhos de operários, que viam suas expectativas de vida frustradas na periferia de Londres e, quase na mesma época, no subúrbio de Nova Iorque. Os punks originalmente se identificavam pela forma como se colocavam na sociedade com um discurso rudimentar e anarquista que repudiava as instituições e os códigos que segmentam as pessoas em classes.

Diferente do movimento hippie da geração anterior clamando pela paz e pelo amor enquanto o Estado operava como máquina de guerra, o punkapresentava uma resposta violenta, marcada pela atitude agressiva e irada. Tinha como características principais músicas rápidas e ruidosas, com canções que abordavam temas anarquistas, niilistas e revolucionários. Nesse sentido, há uma ruptura com a tendência predominante de um virtuosismo musical da época.

Para GALLO (2010) a estética punk ao privilegiar o sujo, o escuro, tem como objetivo representar o resto, o dejeto, o marginalizado. A descrença dos valores dos hippies surgiu em função da força avassaladora que o capitalismo assumiu em sua versão neoliberal. Ao contrário da esperança pela harmonia vindoura, o punk adere à revolta, ao desespero, à tristeza.

O visual chocante dos jovens com cabelos espetados, botinas e jaquetas de couro é uma forma de protesto e provocação. O lema DIY convoca uma atitude: faça sua roupa, sua banda, sua arte. A atitude agressiva é comumente incitada nos shows; os músicos insultam e a plateia responde saltitando, dançando em círculos e esmurrando, inflada de ódio e êxtase. Há uma presentificação no corpo de um ódio primitivo.
No Brasil, o punk surgiu no início dos anos 80 na cidade de São Paulo e depois em outras capitais.Otema principal também era a frustração dos jovens filhos de operários que denunciavam a falta de perspectiva bem como a injustiça social e a violência das autoridades policiais, resquícios da ditadura militar.
A cólera, sinônimo de ira, definida como um sentimento de violenta oposição contra o que molesta ou prejudica, caracteriza um afeto manifestona atitude contestatória dos jovens punks através da provocação na música e na produção artística, e também no corpo, no entrelaçamento das atitudes agressivas e na representação da dança.

Ao fazer algumas amarrações que presentificam a cólera no corpo através da estética e da música, os corpos entrelaçados aos significantes, o movimento seria uma proposta de abertura de um espaço social novo diante do caos de uma sociedade violenta?Uma expressão artística que alça a agressividade e a destrutividade a um lugar digno na cultura?

Descartes (1973) fez da cólera uma das paixões da alma, a qual descrita com a indignação, passou ao registro do afeto, e enfatiza: “o mal praticado por outros quando se relaciona conosco, suscita a cólera”.Aristóteles a considerava necessária,aguçando a coragem e dando-lhe fôlego.
Para Lacan “um afeto fundamental como a cóleranão é nada além disso: o real que chega no momento em que armamos uma belíssima trama simbólica […] Percebemos de repente que os pininhos não entram nos buraquinhos”. Os pininhos dos significantes não se encaixam e a cólera testemunha aquilo que, do real, se coloca em oposição aos empreendimentos do desejo.

MILLER (2000), ao trabalhar o insulto, relaciona-o ao momento em que o Outro como lugar do significante desfalece. Nesse contexto, afirma que a cólera é o afeto que está ligado ao insulto. “A cólera é um afeto de a, afeto que surge quando o ser do sujeito emerge como objeto a, no momento que há uma irrupção de gozo por faltar significantes.”

O afeto da cólera enquanto irrupção do real também está no Seminário 10 de Lacan: “Ela surge, quandono plano do Outro, do significante, ou seja, sempre, mais ou menos, no da fé, da boa fé, não se joga o jogo.” Ou seja, uma reação do sujeito a uma decepção, ao fracasso de uma correlação esperada entre uma ordem simbólica e a resposta do real.

MATET (2019) faz uma curiosa distinção entre cólera-sintoma e cólera justa ou socialexemplificando a última com a cena de Freud se lançando bengala em punho, para enfrentar e dispersar os antissemitas que insultavam sua família. Segundo o autor, a “cólera social se exprime por colocar a justiça e a legitimidade do seu lado”. E caracteriza a cólera-sintoma “mais do que uma emoção ou um afeto diante da impotência desustentar um desejo, pode se tornar, em seu caráter repetitivo, à flor da pele, um estilo, um modo de reação à confrontação do Outro”.

Desta forma a amarração simbólica da cólera representada na cultura pela subversão na música e na estética do punk seria diferente da banalização da violência, do curto-circuito do ódio atuado, por exemplo, nas redes sociais. Há uma conquista de um lugar digno na cultura, deixando marcas na arquitetura urbana com as pichações e grafites. Ao mesmo tempo se renova, derivando atitudes que contestam o status quo com vertentes ecológicas e anarquistas.

Recentemente retornou com força em eventos musicais contra o fascismo e manifestações públicas de protesto contra o atual governo. Aguçando a coragem nas suas letras ou estampando muros e camisetas, a música e a estética do punk continua sendo uma expressão artística que representa a explosão de ódio de uma geração. Uma tentativa de fazer borda aos corpos afetados pelo real da cólera através do entrelaçamento entre a paixão do ódio ea ficção inventada pelos jovens para berrar suas angústias.