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O x analítico – Sobre Adixiones de Ernesto Sinatra

Giovanna Quaglia (Brasília, Brasil)

Vivo drogada, mas não consumo, sou assim, não posso parar nunca…”[1]. É com essa frase que Sinatra nos introduz ao seu livro Adixiones[2], com um x. Esse que parece um lapso, nos antecipa a dimensão do enigma, consubstancial à experiência analítica desde as suas origens, indicando que na contemporaneidade é possível viver drogado, inclusive sem drogas. “Alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”[3], esse é o convite de Adixiones.

Em álgebra, a letra x é usada para representar incógnitas, quantidades desconhecidas ou uma variável. Em Adixiones, Sinatra faz desse x as variações do “não posso parar”. O x compõe a dimensão instigante e original do termo adixiones, “uma versão pós-moderna da toxicomania generalizada”[4] e nos convoca a refletir sobre o fato de que não existe uma única forma de um sujeito intoxicar-se. Esse x vem cifrar o princípio da toxidade do gozo como tal, mais além do objeto eleito.

Como nos indicou Miller, “se nos interessamos hoje pela toxicomania (…) é porque ela traduz maravilhosamente a solidão de cada um com seu parceiro mais de gozar”[5]. Se o ser falante nunca pode estar sem um parceiro, é a partir da clínica das toxicomanias que a Rede TyA[6] vem investigando o laço mais além do principio de prazer que une sujeito – objeto. O paradigma que as toxicomanias nos lançam está nesse além das drogas, que se impõe na contemporaneidade, essa incansável procura por esse mais de prazer que “começa com as cócegas e termina com a labareda”[7].

É a partir da investigação da toxicomania, da banalização do uso do termo adicciones, da tese da toxicomania generalizada, que constatamos que na pós-modernidade tudo ou qualquer coisa pode tornar-se tóxico. Assistimos a uma implosão de toxidade impulsionada pelo imperativo do mercado e dos objetos de consumo: medicamentos, celular, jogos, séries, roupa, comida, sexo, fotos… até pessoas! Tudo pode ser tóxico.

Para analisar essa proposta da toxidade contemporânea, Sinatra interroga a criação do termo “pessoas tóxicas”, indicando-nos que a referência “à toxicidade de alguém induz uma prática segregativa baseada numa concepção paranoica do mundo”[8]. Pois identificar uma pessoa com uma droga, não só a segrega pela nomeação: tóxica como droga; como também, “a condição de rechaço implica situá-la como a causa do mal: o Outro é mau”[9] e temos que afastá-lo. “Se ele é tóxico, eu sou inocente”[10] e confirmo minha posição de vítima desse Outro mau.

Ao contrário dessa perspectiva de ser uma vítima do Outro mau, a psicanálise oferece a possibilidade de interrogar a alienação de cada um aos objetos com os quais se intoxicou. O x da questão da clínica analítica é que notamos que tóxico é o gozo, recaindo nas adixiones o fundamento ético da responsabilidade de cada sujeito sobre seus atos. Esse x de adixiones “mostra a marca singular do obscuro gozo sinthomático de cada um”[11], tudo pode adixionar-se ao gozo.

Para além das classificações dos manuais de psiquiatria, das variações pós-modernas do mal-estar e da banalização do capitalismo com a oferta de objetos, nas adixiones o gozo singular resiste, insiste e se repete. Situamos o sujeito na busca por prazeres em sua face sem-limites, uma maneira incansável de ser (in)satisfeito, o que temos é um tonel das Danaides[12], “em que o Nome-do-Pai põe o gozo num tonel e este sai pelos furos do tonel”[13], nunca se esgota. “Não posso parar (…) não quero parar….”[14].

Valendo-se do operador clínico “função do tóxico”[15], é possível localizar o uso singular que determina a eleição de um objeto. A função do tóxico reside na capacidade de articular o universal com o singular. Em termos gerais, a função traduz uma relação entre uma variável dependente – possibilidades universais que um determinado objeto de consumo pode oferecer – e outra variável independente – o modo singular de satisfação de cada ser falante. Portanto, essa função intoxicante designa a forma como um objeto é inserido na economia singular do gozo de cada sujeito.

O convite que nos faz Sinatra é analisar como se fabrica um objeto tóxico, que em uma lógica perversa procura manter o sem limite da (in)satisfação que mantém viva a própria toxidade do gozo das adixiones, um modo de gozo que faz esse objeto advir no lugar do impossível do gozo da relação sexual.

Se hoje temos as queixas pertinentes aos desfocados, desorientados pelo excesso de imagens, informações, objetos… perdidos no múltiplo; uma análise impele a que, face ao generalizado, algo singular seja localizado. Esse x de adixiones destaca o aspecto singular daquilo que se repete do lado do excesso.

Passando pela clínica, política e episteme, em uma escrita questionadora, Sinatra possibilita que a cada página possamos refletir sobre como as adixiones são um modo de nomear a modalidade de gozo, maníaco e solidário à característica paradigmática da contemporaneidade com sua velocidade, fugacidade e ausência de sentido. Em um mundo em que a resposta instantânea à sociedade especular é o acting out ou a passagem ao ato, subtrai-se o tempo de compreender atrelando-se o ver ao concluir.

Desse modo o livro Adixiones nos convoca a refletir sobre problemas cruciais da psicanálise, tanto a partir da elucidação clínica dos sujeitos tomados um a um, como em termos da sociedade globalizada, ancorada num modelo capitalista e seu reflexo no mal-estar contemporâneo. Com isso, Sinatra nos estimula em Adixiones a manter vivo o campo de investigação na Rede TyA, a partir de uma reflexão sobre o ato analítico na contemporaneidade, desse x, que marca o desconhecido da singularidade do gozo de cada um e do princípio de que nada é sem gozo.

 

* Texto original publicado na edição 4º número da revista Pharmakon on line e gentilmente autorizada a publicação por Maria Wilma Faria EBP /AMP
Fonte: http://pharmakondigital.com/

[1]  Sinatra, E., Adixiones, Buenos Aires: Grama, 2020, p. 19.
[2]  Optou-se por não traduzir a palavra Adixiones ao longo da resenha, mantendo a escrita de Sinatra.
[3]  Lacan, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 322.
[4]  Sinatra, E., op. cit., p. 96.
[5]  Miller, J.-A. A teoria do parceiro. Texto publicado neste número de Pharmakon digital. Cf. p. 44.
[6]  Rede de Toxicomania e Alcoolismo do Campo Freudiano desde 1992, impulsionada por Judith Miller em reunião informal em Caracas.
[7]  Lacan, J. O Seminário, livro 17, O Avesso da Psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 68.
[8]  Sinatra, E., op. cit., p. 158.
[9]  Ibid., p. 158.
[10]  Ibid., p. 158.
[11]  Ibid., p. 98.
[12]  Na mitologia grega, após a morte de Dánao suas filhas foram condenadas a encher com água um tonel esburacado, um trabalho infinito de encher para esvaziar.
[13]  Brodsky, G. La locura nuestra de cada dia. Caracas: Editorial Pomaire, 2012. p. 71.
[14]  Sinatra, E., op. cit., p. 21.
[15]  Ibid., p. 94.