(POLÍTICA LACANIANA E SUAS RESSONÂNCIAS)
Sonia Perazzolo (CLIPP)
A transexualidade é vista como “questão trans”. Para entender um pouco do que se trata, vamos pensar o significado da palavra “questão”. De acordo com o dicionário “Oxford Languages”, “questão’ é substantivo feminino que quer dizer pergunta; interrogação; frase ou oração figurativa. No sentido figurado é matéria a examinar; ponto que suscita a discussão; assunto; ponto; tema; tese. Neste sentido, transexualidade é muito debatida por diferentes pontos de vista teóricos. Etimologicamente, trans (do latim) significa “além de”, “para além de”, “do outro lado”.
Em 2018, a transexualidade deixou de ser classificada como disfunção mental pela O.M.S, mas ainda existem grupos que divergem dessa decisão. No Brasil, por exemplo, um deputado e uma psiquiatra do Rio Grande do Sul i falaram que existe uma pandemia da transexualidade. O termo pandemia significa doença, o que não é o caso da transexualidade: nota-se sim, uma pandemia de transfobia.
O que é uma pessoa trans?
De acordo com a organização “Transcendemos” ii, o termo trans é utilizado para definir uma pessoa que não se identifica ao sexo biológico que, culturalmente, definia o gênero dessa pessoa.
Mulheres trans ou pessoa transfeminina designa alguém que, tendo nascido num corpo “masculino”, se entende como figura feminina e vice-versa; homem trans ou pessoa transmasculina que tendo nascido num corpo feminino, se identifica como uma imagem masculina. O significante trans abarca os autodenominados transexuais, transgêneros, travestis, pessoas não binárias, etc.
Uma pesquisa publicada pelo Jornal da UNESP iii revelou que, das 6 mil pessoas entrevistadas no Brasil em 129 cidades, 19 milhões (12% da população) se declarou fora da heteronormatividade. Um dado relevante nesta pesquisa foi a constatação de que os episódios de violência sexual contra pessoas trans são 25 vezes maiores do que os praticados contra homens héteros. A associação ANTRA iv apontou que, em 2022, tivemos 151 pessoas trans mortas – 131 assassinatos e 20 suicídios – o Brasil é o país que mais mata trans no mundo.
Tomar conhecimento destes números é importante para que ações de Políticas Públicas em todo o território brasileiro possam ser mais eficientes e eficazes, como a tomada de decisões e ações, na formação dos profissionais de saúde para atendimento dessa população. O uso de automedicação é comum, trazendo riscos à saúde, desde ingestão de remédios para gripe até hormônios – na tentativa de facilitar a transição para outro sexo.
Em 1591 (sec. XVI), o Santo Ofício registra Xica Manicongo como a primeira travesti do Brasil: Francisco Manicongo, escravo negro que, como Xica, tornou-se símbolo de resistência. Desta data até hoje, a luta por direitos e pertencimento no âmbito social é uma luta travada diariamente.
Trans é significante do Outro (da medicina, da sociologia), mas o significado varia para cada sujeito. Portanto, trata-se de considerar o “sujeito Trans” na experiência e não a “experiência Trans”.
Por que falar de trans na experiência?
Teixeira v, ao falar sobre transexualidade, declara ser um fenômeno clínico que atravessa a contemporaneidade e pode ser considerado um sintoma da civilização atual, afirmando ainda que as cirurgias e mudança de sexo têm se tornado mais frequentes entre os transexuais, graças ao aperfeiçoamento e aumento das técnicas cirúrgicas e terapias hormonais.
Para a psicanálise de orientação lacaniana, especialmente no último ensino de Lacan, o corpo que está em cena é o corpo do ser falante (falasser). Não apenas o corpo biológico, mas o corpo apreendido nas dimensões do Imaginário, Simbólico e Real, ou seja, o corpo inserido no campo das representações. Neste sentido, não será através de modificações corporais que o sujeito obterá o resultado da mudança desejada.
Para Bassols vi, a discussão da passagem de um sexo a outro faz sentido a partir da teoria de Freud, que disse não haver inscrição da diferença dos sexos no inconsciente, além de seguir com Lacan o aforismo “não há relação sexual”.
A política da psicanálise visa, via discurso do analista, fazer valer a singularidade de cada sujeito. Para cada um, o significante Trans, terá UM significado diferente e são as diferenças a serem avaliadas. Cito Dias vii: “É fundamental, portanto, que saibamos diferenciar o fenômeno trans, produto e efeito dos discursos de uma época, e o sujeito trans, ser falante que sofre (e muito) por não se acomodar ao corpo e à que lhe foram designados em seu nascimento”.
i Carta Capital. Editora Basset. Copyright. 2023.Deputado e psiquiatra defendem que transexualidade é epidemia. Advogado vê LGBTfobia. Alexandre Putti.03.03.2020. Seção Diversidade.
ii https://www.transcendemos.com.br -Consultoria em Diversidade e Inclusão.
iii Jornal UNESP- outubro de 2022. https://www.jornal.unesp.br.
iv Benevides, B. G. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022 / Bruna G. Benevides. ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA, 2023. 109p
v Teixeira, M. C. (2006a). O transexualismo e suas soluções. Asephallus, 1(2). http://www.isepol.com/asephallus/numero_02/artigo_06port_edicao02.htm.
vi BASSOLS, M. La diferencia de los sexos no existe en el inconsciente: Sobre un informe de Paul B. Preciado dirigido a los psicoanalistas. Buenos Aires: Grama ediciones, 2021.
vii Dias, E.C. Trans-formações: solução para o real do sexo? Texto inédito apresentado na Plenária “SoluçõesTrans” durante o Encontro Brasileiro de Psicanálise do Campo Freudiano (EBP). Belo Horizonte: 25 a 26 de novembro de 2022.