Célia Maria Betti Siqueira (CLIPP)
A criança, no início do século XX, começa a ter um lugar na sociedade; as elaborações teóricas de diagnóstico e tratamento dos transtornos infantis datam de cerca de cem anos, sendo esperado que o interesse por tais questões tenha se manifestado recentemente.
No século XIX a clínica psiquiátrica considerava, como único transtorno mental infantil, o retardo. Neste sentido o tratamento era baseado numa pedagogia especializada. Um exemplo disso é o do Dr. Itard, médico francês, que se propôs a educar Victor, nome que recebeu um menino encontrado numa floresta ao sul da França. Essa criança teria vivido isolado até os 12 anos. Este trabalho, pela sua sistemática, foi considerado um marco da Educação Especial. O que Itard conseguiu foi uma melhora em sua comunicação e sociabilidade. Entretanto, com o passar dos anos Victor é deixado com a governanta, a Sra. Guèrim.
Nos Tratados psiquiátricos, século XIX, o que se encontrava era a clínica da criança como cópia da do adulto. Kraepelin descreveu a “demência precoce” como uma entidade diferente de outras psicoses. O termo “esquizofrenia” é cunhado por Bleuler em 1911 e ao descrever coloca como uma característica deste quadro o fechamento em si, chamando-o de autismo. A noção moderna de psicose infantil é consequência do diagnóstico de esquizofrenia. Mais tarde, Leo Kanner, em 1943, usa “autismo” como a designação de um outro quadro clínico.
Freud com a descoberta do inconsciente contribui com um novo caminho onde a doença mental não é mais entendida com déficit. No caso do Presidente Schreber, através de seu relato As memórias de um doente dos nervos, Freud analisou o delírio não apenas como sintoma, mas como uma tentativa criativa de substituir uma realidade insuportável, por uma mais tolerável, buscando assim a cura do delírio. Também observou que ao escrever suas memórias pode ter favorecido sua estabilização. Quanto ao tratamento infantil, Freud tratou do pequeno Hans, um caso de fobia, através do pai do menino, que era seu discípulo.
Outro caso de Freud é “O Homem dos Lobos”. Este paciente relata um dos principais acontecimentos em sua infância. Estava com 5 anos de idade, nesse dia, brincando de fazer cortes em uma árvore com um canivete, de repente atônito nota que havia cortado o dedo mínimo da mão e este ficou pendurado. “Sem sentir dor, mas com muito medo não se atreveu a dizer nada para sua babá e foi incapaz de olhar para o dedo. Ao se acalmar, viu que o dedo estava inteiramente intacto” (BARROSO, 2014, p.23).
Este episódio ilustra e distingue o mecanismo da foraclusão do Nome do Pai e por conta desta alucinação e outras características do caso, Lacan considerou tratar-se de uma Psicose. Freud considerou uma neurose infantil e depois enquanto adulto, como uma Neurose Obsessiva.
Em 1958 Lacan propõe como hipótese causal, o acidente simbólico da foraclusão do Nome-do-pai, ou seja, há um furo na cadeia significante, na significação fálica. Ainda afirma que a psicose enquanto estrutura é a mesma na criança e no adulto, apesar de sua manifestação ser diferenciada.
A dificuldade de fazer um diagnóstico diferencial, ou ainda, de reconhecer na criança a psicose, adiando para melhor poder se observar possíveis mudanças, acabam nas hipóteses clínicas indefinidas e pouco rigorosas, como borderline, debilidade mental, Transtornos do Espectro Autista (TEA), a atual classificação do DSM, que ao querer incluir muitas manifestações, não favorece a especificação do quadro clínico, impedindo que se estabeleça a direção de tratamento do caso.
É, também, comum encontrarmos uma criança que tenha frequentado por anos algumas especialidades como: fonoaudiologia, psicopedagogia, fisioterapia, avaliação psiconeurológica e ninguém considerou o inconsciente, a subjetividade da criança.
Temos dois problemas quando discutimos sobre a psicose na infância: por um lado a unidade de Psicanálise e por outro a investigação clínica cuidadosa.
Quanto a unidade da psicanálise podemos dizer com Lacan que a criança é “um sujeito de pleno direito” e por outro lado que a formulação das estruturas clínicas lacanianas trouxe grande esclarecimento também para as crianças, pois esta é atemporal. É preciso estabelecer a clínica diferencial entre neurose, psicose e perversão.
Por outro lado, é preciso frisar também, que existe uma especificidade da psicose infantil, que necessita de investigação clínica que se empenhe a responder caso a caso: se os fenômenos psicóticos estão estruturados como linguagem, se o paradigma schereberiano contempla as características da psicose na infância e como interpretar a questão do gozo na psicose infantil.
Em Notas sobre a criança, que Lacan escreve para Jenny Aubry, pediatra e psicanalista, publicado nos Outros Escritos em 1969. Ele brevemente fala da constituição subjetiva e a posição que o sintoma da criança ocupa. O sintoma pode responder “a verdade do casal familiar”, ou “decorre da subjetividade da mãe”, neste caso deixando a criança à mercê e refém de “todas capturas fantasmáticas” (LACAN, 2003 [1969], p. 369). Em Freud a criança é situada como Ideal do eu.
Enfim cabe ao praticante da Psicanálise o empenho teórico e clínico, pois neste século já temos uma quantidade significativa de trabalhos que podem contribuir para melhor compreender a complexidade do atendimento de crianças com psicose infantil.

