Débora Garcia (CLIPP, Integrante do Núcleo de Apresentação de Pacientes e Psicose )
É com a conhecida frase de Lacan “A psicose é isso diante do que um analista não deve recuar em nenhum caso”, proferida na Abertura da Seção Clínica de Vincennes (1977), que inicia esse texto, fruto da minha participação no Núcleo de Apresentação de Pacientes e Psicose. Essa frase orbita a minha prática como Analista de Orientação Lacaniana.
Freud em uma carta de 1928, para Istvan Hollos, médico-chefe da Casa-Amarela (asilo de Budapeste), em resposta ao livro por este publicado e enviado a Freud sobre o trabalho ali realizado, revela e confessa que sua hesitação em responder era devida a seu horror diante dos pacientes psicóticos: “tive finalmente de me confessar que a razão disso era não gostar desses pacientes. Com efeito, eles me dão raiva, irrito-me por senti-los tão longe de mim e de tudo o que é humano.”[1]
A demora de Freud em responder a Istvan Hollos teria sido devido a perturbação que o livro lhe causou, aponta Miller na terceira lição de Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Freud teria sido impactado em algo do seu “não quero saber nada disso”. A frase de Lacan “não recuar diante da psicose” tocaria o psicanalista neste ponto?
O caso de Apresentação de Pacientes que relatei no Núcleo, é um belíssimo caso clínico extraído do livro “Cuando el Outro es malo”, caso apresentado por Jean-Daniel Mattet e por ele acompanhado por mais de 16 anos. O autor já diz inicialmente não haver dúvidas que se trata de um caso de paranoia. Na construção do caso, cujo título é “Eu era o homem de um pai”[2], foi possível acompanhar a trilha feita pelo psicanalista ao lado de seu paciente rumo a um mundo suportável para este, mundo esse em que a vida social do paciente foi praticamente amputada, sendo o contato com o analista sua única ligação com o mundo. Jean-Daniel Mattet coloca que o paciente pôde falar com ele sem que ele (psicanalista) estivesse marcado pela maldade, “parceria excepcional” e, portanto, marcada pela excepcionalidade, dirá Miller. Esse foi um dos pontos que me chamou a atenção: o lugar da transferência consentida pelo sujeito a seu psicanalista. Ilustro essa passagem destacando um trecho da discussão do caso realizada entre Jean-Daniel Mattet e Miller:
”Jean-Daniel Matet: A partir deste ponto de vista do êxito, podemos apresentar a pergunta. É um homem muito solitário, isolado do mundo, mas essa é a via que elegeu, no sentido em que se aferra a seu Outro malvado. Isso é o que nos mostra.
Jacques-Alain Miller: Não caia nesse excesso de modéstia. Tem aqui um sujeito cujas crises o conduziram à internação. Atualmente não está sob essa ameaça. Com sua ajuda, pôde armar-se um espaço suportável. Ao menos devemos considerar – sem que se trate aqui de curá-lo de sua paranoia – que você o acompanhou na construção de um mundo suportável.”[3]
O caso apresentado, mostra a meu ver, uma possível estabilização de um paciente paranoico, estabilização tecida pela via do consentimento à transferência.
Das questões fundamentais abordadas e trabalhadas pelo Núcleo de Apresentação de Pacientes e Psicose, como: fenômenos elementares, o Outro malvado na paranoia, a erotomania, a errância, Um-Pai, assim também tantas outras questões suscitadas nas ricas discussões entre os colegas, a transferência nas psicoses abre para a questão sobre o horror que Freud confessou em relação aos pacientes psicóticos. Esse horror apontado por ele, seria o lugar em que o analista é colocado na transferência? O consentimento à transferência por parte do analista ao sujeito psicótico viabilizaria o laço transferencial por parte do paciente?
O “Núcleo de Apresentação de Pacientes e Psicose” é um lugar caro à minha formação como Analista Praticante, possibilita-me transitar entre o horror que os casos de psicose podem causar, mas já não sem o desejo de saber, advindo de um efeito de análise.
[2] Livre tradução Marizilda Paulino.
[3] Miller, J. A. (2011). Cuando el Otro es malo. Buenos Aires: Paidós.