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SER – VIL

Katia Ribeiro Nadeau

É por este significante que R.  se auto nomeia  , também tem  “pedaços de mim ”  , referindo-se às sobras, aos restos , à que se identifica, devastado na demanda do Outro.

Devastação que o acompanha quando entra na sessão, quando por quase um ano, vinha poucas vezes, chegava sempre muito atrasado, frequentemente por volta das 22 hs.
“Todos querem pedaços de mim” , “não tem fim, só repetição…….”

R.é inglês , onde passa sua infância com pai , mãe ,e mais 2 irmãs mais jovens. Inicia por volta de oito anos comportamentos delinqüentes e inaceitáveis , de jogar documentos na piscina , à por fogo na casa ou ainda tentar matar suas irmãzinhas com medicação. Era o “terror” ao que associa como uma provocação ao vazio afetivo  e frieza com que sua mãe tratava a relação com os filhos. Sem sentimentos, sem desejo, sem contato físico, sem demonstração de carinho, amor ou qualquer contato físico , sem afeto.

A situação toma tal proporção que R foi enviado ao colégio interno , onde paralizado pelo medo e apartado do convívio familiar começa a se “disciplinar “ e a emudecer, produzindo assim um fechamento no laço com qualquer Outro. Perde a privacidade, individualidade , subjetividade,particuliaridade, e, entristece.

De um lado a educação inglesa , transforma o menino vil em um lorde inglês,  do outro, associa esse período como  “ ali eu morri “  , “nunca mais consegui ser eu”.

Após terminar a universidade, muda-se para Paris , onde adota a língua francesa por sua “ língua MÃE “ , é onde também vai vivenciar sua homossexualidade , se casa bem longe de casa, com um homem 20 anos mais velho, estabelece uma relação de 10 anos , regada a traições, desafetos,e vazio de desejo sexual. Demora muito para conseguir separar-se, ponto de repetição do velho trauma da separação.

Vem ao Brasil em 2.000 , sozinho, deslocado das origens e da língua , obessivamente trabalha , transforma-se em um advogado internacional renomado . começa um novo sintoma : torna-se workalolic grave. Entre países, escritórios , e clientes pelo mundo, entre um vôo para qualquer lugar distante: China , Japão , Europa, Eua ……vai atentendo ao que o OUTRO quer dele , “ não consigo dizer não “ , devastado pelo gozo da submissão e da obediência segue elaborando  “ sou passiv – agressive “ e tão controlado que superei minha mãe”.

As sessões acontecem em 3 linguas, começa com um português de difícil compreensão , entre frases surgem expressões em inglês , e, quando está mais próximo de conteúdos afetivos e sexuais é o francês que advem.

Como uma defesa contra o real , o desenlace entre o corpo e os afetos parecia funcionar , começamais um sintoma  “ brasileiro “ – a promiscuidade, desta vez, repetição e inversão, mantinha relações sexuais com jovens garotos , sem envolvimento, de um lado ajudava, com dinheiro, com orientações , e de outro usava . Interrompe essa fase depois de contrair uma DST. Deste momento em diante, só o trabalho se acentuava, ao ponto de seguir em média umas 20 hs/dia nisto.
Atualmente namora um rapaz de 18 anos , encontrou um laço possível de amor e diz que isso o faz querer ser melhor , mais próximo , mais afetivo.

Agora vem à análise mais vezes , um pouco menos atrasado . Fala pouco, está sempre exausto ,mas impecavelmente bem cuidado e arrumado , e triste, muito triste.
Só as vezes consente em ir para o Divã , em uma delas , dizia “  não sei porque , mas sou SERVIL “  ao que interpreto : SER  – VIL ??  seu momento de maior surpresa   e enígma.

Gênio profissional, tornou-se milionário e ODEIA seu trabalho , já que metonimicamente é o deslizamento do gozo /castração  “ tem o mesmo funcionamento do colégio interno “  Gosta de carros, motos, avião , barcos , velocidade e liberdade, rota de fuga de sua angústia . Compra casas , várias em vários países, mas só este ano comprou uma casa para morar , aqui no Brasil , onde pretende ficar e se aposentar.

A dificuldade que se apresenta é a recorrência do sujeito obsessivo a modalidade de encobrimento do desejo do Outro pela Demanda do Outro . A angústia é encoberta pela Demanda do Outro/objeto.

Adela frid  recorta “ na clínica do corpo , as necessidades só se satisfazem através dos movimentos errantes da metonímia, vertente mortal da excitação, onde algo da língua materna não se produziu nesse laço por uma falha de transmissão.”

Quero neste ponto marcar o objeto voz , na medida que  “ a voz como objeto a , não pertence ao registro sonoro, som distinto do sentido, a voz tem sua função  a-fonica. “ se afina com o sujeito do significante ao perder sua substancialidade, centrado por um vazio que é a castração , consistência lógica que consegue se encarnar naquilo que cai do corpo . A instância da voz merece inscrever-se como um terceiro entre a função  da fala e o campo da linguagem”.

“ No registro da voz está o resíduo , resto da subtração da significação ao significante.” ( Miller )
Lacan chama voz um efeito de foraclusão do significante, não redutível, carga afetiva, libidinal da palavra que opera uma ruptura na cadeia significante, esse pedaço da cadeia significante quebrado pela carga de gozo, não pode ser assumido pelo sujeito, ele passa para o real e é atribuído ao Outro , A voz do Outro . A voz entra no lugar daquilo que do sujeito, é indizível – seu mais de gozar”.

Lacan nos precisa, “ a voz é o real do corpo que o sujeito consente perder para falar, a voz é esse objeto caído do órgão da palavra”.

Se ao analista cabe sustentar o lugar da verdade , lá vai uma analista brasileira , com seu paciente inglês , que adota a língua francesa como possibilidade de existência e atualmente encontra no Brasil seu jeito de saber fazer com seu gozo e transitar entre a serviliência e o ser Vil  fora do sentido .

 

Referências bibliográficas
1-Lacan, Jaques      sem. X   a angústia
2-Lacan, Jaques      sem XI   Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
3-Lacan, Jaques       Outros escritos  –  radiofonia
4-Miller, Jaques Alain     Jaques Lacan e a voz      – opção lacaniana on line n. 11
5- Fryd, Adela       texto publicado no boletim 59 / Enapol