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Carmen Silvia Cervelatti (EBP/AMP)

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O enigma do amor é o despertar do elemento infantil”

[manuscrito da Sigmund Freud Collection]

Para Freud, além de uma dissimetria fundamental na parceria – signo do impossível –, há um automaton1 no amor configurado em equivalência, imaginária ou simbólica, a um objeto fundamental, constante. Trata-se de um amor repetitivo, reeditado pelo sujeito no decorrer de sua vida, depois do período de latência, quando o Édipo pousou seus efeitos. No amor se diferenciam dois tipos de escolha objetal: o sujeito mesmo (narcísica) ou alguém mais forte que ele, o pai ou a mãe (anaclítica).

Nas neuroses, a fantasia fornece o enquadramento que secreta ficções apoiadas na relação a esse objeto fundamental, enquanto que nas psicoses a falta de inscrição do Nome-do-pai traz consequências importantes na vivência do amor. No Homem dos Lobos, caso que Freud atendeu na mesma época que escrevia seus textos sobre a vida amorosa, encontramos a análise meticulosa sobre a condição de enamoramento de seu paciente. Há aí uma fixidez, uma imobilidade, uma compulsão do sujeito que guarda uma similitude com a cena primária construída por Freud: a observação do coito a tergo entre seus pais – a cena traumática primordial, suposta ao primeiro ano de vida. Aos 4 anos, o sonho que nomeia o gozo do paciente plasma a angústia e os restos dessa cena, um dos vestígios do inconsciente real.

O sujeito “é um observador, e é seu próprio olhar que surge do exterior, desde os globos oculares e se há um problema [na observação da relação sexual dos pais], como disse Freud, é porque é preciso que essa cena seja traduzida em termos de castração.”2 É justamente nesse ponto que reside o impasse desse caso, não houve a tradução apontada, desafiando assim a classificação neurose-psicose-perversão. Freud assinalou que por um lado seu paciente aceitou e, por outro, rejeitou a castração. Lacan, no Seminário 10, analisou em detalhes a questão do olhar, que retorna no sonho dos lobos, um sonho de angústia, extrapolando o campo do Outro e a correspondente extração do objeto pulsional.

Sergei Pankejeff apaixonava-se instantaneamente ao ver mulheres de condição social mais baixa, agachada no chão, com balde e vassoura ao seu lado, como se deu com Grusha em sua infância e com Matrona na adolescência, que lhe transmitiu gonorreia, causa da disrupção subjetiva chamada de depressão e da futura busca pela psicanálise, depois de tratar-se com Kraepelin.

É bastante interessante seguir Freud na construção detalhada da cena primária, sempre atento aos pequenos sinais e ao equívoco homofônico das palavras na língua materna do paciente. No que diz respeito ao enamoramento instantâneo, alguns elementos foram mais notáveis no trabalho analítico, mais ligados à lalíngua do que ao encadeamento de significantes. Uma inquietante impressão causada pelo abrir e fechar das asas de uma borboleta, grande e de listas amarelas, semelhante a uma mulher abrindo e fechando as pernas (V), V também era a hora que aparecia um “entristecimento em seu ânimo”3. Grucha, nome de uma pera grande de listas amarelas, também era o nome da babá que estava no chão da qual guardou o sinal V romano; segundo ele, foi a suposta hora que a viu pela primeira vez, enquanto bebê. A cena com Grucha (por volta dos 2 anos e meio) “estabeleceu uma importante ligação entre a cena primária e a posterior compulsão amorosa, que se tornou tão decisiva para o destino do paciente, e além disso introduz uma condição de amor que esclarece tal compulsão.”4

Qual o estatuto desse apaixonamento tão particular? Do sonho dos lobos podemos depreender uma ruptura na homeostase pulsional, também evidente na cena traumática (com a defecação e o grito da criança) e na alucinação do dedo cortado, produzindo inquietação, estranheza, angústia e paralisia. Sinais de algo que extrapola a ordenação do Simbólico, fora do sentido, que repete e obedece somente ao processo primário. Algo que volta sempre ao mesmo lugar, razão do furo, que reclama o Simbólico e/ou o Imaginário.

A angústia entra em jogo antes da cessão do objeto, conforme Lacan postulou no Seminário 10, a angústia. A partir do sonho dos lobos Freud construiu um episódio de comoção anal, uma evacuação5. No enamoramento, em detrimento da mulher enquanto objeto causa do desejo (neurose) percebe-se, então, que a angústia não atuou como moderador que produziria tal objeto. Apareceu, no entanto, o objeto não extraído do campo do Outro e, consequentemente no caso em questão, a necessidade compulsória da extração forçada das fezes, restituindo a sensação de realidade com a queda do véu.

Agnés Aflalo6 apresenta uma dicotomia na condição da vida amorosa do sujeito: o traseiro da mulher tem o papel de objeto fetiche, via do desmentido da castração, e a mulher subalterna, isto é, depreciada como objeto; diferente da dicotomia do objeto encontrada na neurose obsessiva.

Lá onde não há relação sexual, isso produz um buraco que traumatiza (troumatisme). Nós inventamos! Nós inventamos o que podemos, é claro!”7 No Homem dos lobos não se trata de uma condição do amor mediada pelo Édipo e pela castração simbólica. Podemos considerar esse apaixonamento como uma invenção que enoda o Real mediante lalíngua pelo Imaginário a partir do encontro precoce e traumático com o sexual. A cena infinitamente reproduzida é sustentada pelo falo imaginário possibilitando ao sujeito ocupar, virtualmente, o lugar do pai no coito a tergo junto à sua mãe com suas amadas (Grusha, Matrona, Teresa, Luisa…) – uma virilidade imaginária. Nada de ficções, das histórias que dão liga (match) ao amor por pedir algo ao Outro, mas em seu lugar uma condição de gozo dada pelo desmentido da castração associada à depreciação da mulher. Sem angústia e sem reconhecer a cena primária até seus últimos dias8, verifica-se um gozo que permite ao Homem dos lobos, além de nomeá-lo, viver e reeditar a cena sem evacuar, experimentando uma exaltação no lugar da depressão, presente antes do instante do enamoramento. Uma invenção imóvel e imobilizada, que itera. Isso não impediu que houvesse ao lado outras correntes em relação à castração, razão de postulá-lo como um caso de psicose ordinário por extrapolar a classificação tripartite.

1 MILLER, J.-A. “Sobre fenómenos de amor y ódio em psicoanálisis”, in Introducción a la clínica lacaniama. Conferencias en España. Barcelona: RBA Libros, pp.297-306.

2 MILLER, J.-A. “Observaciones sobre padres y causas”, in Introducción a la clínica lacaniama. Conferencias en España. Barcelona: RBA Libros, p.139.

3 FREUD, S. História de uma neurose infantil, In: Obras Completas Vol.14 – São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.121.

4 Idem, p.124.

5 MILLER, J.-A. “Introdução à leitura do Seminário 10 da Angústia de Jacques Lacan”, in Opção Lacaniana n.43, maio 2005. São Paulo: Ed. Eolia, p.54

6 AFLALO, A. “Reavaliação do caso do Homem dos Lobos”, in O Homem dos Lobos … com Lacan. Belo Horizonte: Ed. Scriptum, pp.81-82.

7 LACAN, J. Seminário 21: Le non dupes errent, inédito, aula de 19 de fevereiro de 1974.

8 OBHOLZER, K. Conversas com o homem dos lobos: uma psicanálise e suas consequências. Rio de Janeiro: Jorge ZahAr Ed., 1993.