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VICISSITUDES DO ENSINO DA PSICANÁLISE – da solução ao problema

III Conversação dos Institutos – Rio de Janeiro – junho 2011
Marizilda Paulino

Este trabalho foi elaborado a partir de pesquisa realizada na Clipp com participantes de diversas atividades  . Esta pesquisa se deu em torno de três temas principais para responder a questão que sempre retorna: ter um curso de psicanálise oferecido pela Clipp é necessário ou é contingente?


O primeiro momento da pesquisa foi o levantamento de dados sobre quantos e quais são os cursos oferecidos na cidade. O segundo, foi um levantamento bibliográfico relativo ao tema do Ensino; e o terceiro, visava ao próprio curso ministrado atualmente na Clipp. 


Através de uma busca rápida na internet pelo Google, verificou-se a existência de aproximadamente 500 mil resultados de “curso de psicanálise”, sendo que 23 puderam ser identificados e apresentados a partir de propostas, metodologias, conteúdo, vinculação institucional, programas, professores e preços, sendo estes muito variados entre si. O objetivo, no entanto, é comum a todos e visa à formação do psicanalista.


Num exame mais detalhado, percebemos que a maioria dos cursos procura respeitar o tripé da formação proposta por Freud a partir da análise pessoal, da supervisão e do ensino.


Quanto ao tema do ensino, fizemos um levantamento de textos e selecionamos aqueles que nos proporcionaram um percurso teórico cujo objetivo era diferenciar transmissão, ensino e formação. O termo “transmissão” é aquele que nos orienta em direção ao matema, às “escrituras”  . Abordar o ensino pela via do matema implica que a transmissão da psicanálise ocorra na própria experiência da análise pessoal, ou seja, é “lei mesmo”, como diz Lacan no Seminário1, que aqueles que participam desta formação “tragam mais do que um esforço pessoal” e possam contribuir com o seu máximo, já que o “pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão”. Miller aborda a diferença entre transmissão e tradição, apontando como Lacan deslocou a noção daquilo que se transmite e que está presente tanto na tradição como na transmissão, para incluir a proposta de invenção. Isto é, “Definitivamente, cabe a cada um reinventar a psicanálise”  no decorrer de cada percurso, invenção, esta, ligada à operação analítica pela qual passou o praticante da psicanálise.


Outro tema fundamental a ser abordado para responder a questão que orienta este texto é o da diferença entre a transferência dirigida à Escola e o saber que se espera receber através do trabalho no Instituto. Podemos diferenciar o campo da Escola como aquele onde se dá a formação do analista e o saber veiculado sustentado no “autorizar-se desde si mesmo”, e o lugar do Instituto como o do ensino que não garante que com ele se aprenda algo, não garante “que dele resulte um saber”.


Freud, contudo, acreditava ser capaz de transferir esse saber, e o fez para um corpo constituído para esse fim, uma associação internacional dotada de uma enunciação coletiva (IPA). Tal projeto mostrou-se um fracasso, não porque Freud não detivesse o saber, mas porque a ideia de coletivizar a opinião verdadeira, a partir de um lugar de enunciação onde pudesse ser enunciado o que é e o que não é psicanálise, constituiu o assim chamado “erro eclesiástico”, segundo as palavras de Jacques-Alain Miller, no texto já citado.


Por outro lado Lacan ressalta que o enquadre institucional rígido e a estabilidade ortodoxa dada por Freud à prática analítica, talvez tenha sido o único abrigo possível para evitar a extinção da experiência analítica naquele momento histórico.


De nossa parte, atribuímos às rupturas feitas por Lacan, tanto institucionais, quanto na prática clínica, a possibilidade de “abrigar” a experiência analítica naquela época. Certamente, o momento atual pede estratégias novas. As diretrizes são dadas a partir da atualização constante da orientação lacaniana através do curso anual de Jacques-Alain Miller. Lacan prioriza em seu ensino a reinvenção e não a repetição. 


Por que nos referimos ao ensino de Lacan e não dizemos a teoria da psicanálise? Por que aceitamos a ideia de que não há teoria em Lacan? Por entendermos que há algo que se transmite, e há algo que se perde a cada vez; isto é, não se estabelece com a experiência analítica uma relação que permita uma fixidez teórica, pois a experiência analítica ultrapassa qualquer teoria que nela pretendeu se fixar. Ou seja, a lição de Lacan, segundo Miller, é o primado da experiência sobre a teoria. Vale ressaltar que essa experiência não quer dizer experiência humana, mas uma experiência determinada, decorrente de um discurso. Lacan viu na estrutura o instrumento necessário para teorizar, dispor a disjunção do singular, o desatamento do real e o mistério do inconsciente.
Outra preocupação é a de distanciar o lugar de discípulo do lugar daquele que ensina a partir de sua posição de analisante. Citamos Lacan: “O que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma”  Nesse mesmo texto, Lacan ressalta que o próprio ensino pode funcionar como obstáculo ao ensinar, na medida em que aquele que ensina acredita que “sabe o que diz”. 


Ainda no contexto relativo ao saber e ao ensino, compartilhamos, com a colega Glória Maron, a seguinte questão: “como evitar que a insuficiência teórica se transforme numa posição de impotência frente à teoria e a clínica?”  A amplamente conhecida diferenciação entre o saber suposto e o saber exposto, nos aproxima de outro debate fundamental: o da enunciação coletiva.
O Curso atual da CLIPP estabeleceu um programa que visa a respeitar essa orientação, isto é, nele, a experiência se sobrepõe à teoria, os casos clínicos de Freud orientam o debate constante. O problema se apresenta maior com a definição de conclusão. Supõe-se que, através desse programa, os participantes possam chegar ao final com um conhecimento mínimo possível sobre os conceitos da psicanálise. A tentativa de verificação se dá através de um trabalho individual ao final dos três anos. Busca-se respeitar a relação com o saber psicanalítico de maneira que cada um faça uso dele ao se aproximar de seu estilo e de sua questão desde sua posição em relação à análise pessoal. Para tanto, é necessário que haja uma estrutura de discurso que dê suporte a tal metodologia.


O curso da Clipp existe desde 2004. Foi pensado tendo como eixo os casos clínicos de Freud articulados aoensino de Lacan. É composto por seis módulos, um por semestre, sendo que no último elabora-se uma monografia que é apresentada. Os candidatos passam por duas entrevistas, uma com o coordenador do módulo e outra com um membro da Comissão Científica. Eles podem entrar em qualquer módulo, pois não há uma hierarquia, independentemente do percurso de cada um. Há um revezamento entre os coordenadores para que cada um possa participar de todos os módulos. Os professores apresentam suas aulas de acordo com o programa, a bibliografia e a metodologia já estabelecidos. Os alunos participam de atividades complementares que acontecem na Clipp, na Escola ou em outras instituições parceiras.


Para concluir, utilizaremos a metáfora da estratégia, tática e política usada por Lacan na Direção do Tratamento.Quanto à estratégia, a Clipp propõe que a experiência se sobreponha à teoria, através do ensino, visando a que cada um possa se aproximar desse conhecimento a partir de seu próprio lugar, uma vez que esse ensino não busca um saber cristalizado, mas sim, causar efeitos. A não homogeneidade dos participantes, provoca a aproximação de cada um ao ensino de Lacan, a partir de seu lugar frente ao Outro.


No que tange à tática, o programa “Os casos clínicos de Freud e o ensino de Lacan”, propõe a não hierarquização dos módulos que compõem o curso, ressaltando,  apesar da estrutura semelhante a de um curso universitário (conteúdo programático, bibliografia, corpo docente, atividades complementares visando a uma aproximação com a prática clínica, seminários e monografia), um percurso que para o participante pode ser singularizado. Além disso, procuramos evitar que os coordenadores se repitam no trabalho com cada caso freudiano. 


Do ponto de vista político, o curso de psicanálise da Clipp pretende tornar seu ensino um espaço a ser ocupado por um fazer capaz de repercutir no futuro da psicanálise e permeável às mudanças de sua época. Ou seja, a política é aquela de trazer “a peste”. Para tanto, cabe utilizarmos a metáfora lacaniana sobre o bacilo da peste que, em si, não é uma doença; ele somente a engendra para os animais que não são feitos para suportar o bacilo. Logo, o ensino da psicanálise se dá pela via da contaminação, de algo que se passa e que não se trata nem do saber, nem da consciência. Isso visa a conquistar “a justa situação de despojamento, de desmuniciamento”, aquela do analista “infectado” pela dependência, tanto do “desejo do Outro quanto de sua fala.”
Sim, o Curso de psicanálise da CLIPP é contingente!


BIBLIOGRAFIA:
1. Freud, S. “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Edição Standard Brasileira), v. XVII, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
2. Lacan, J. “Alocução sobre o ensino”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
3. Lacan, J. “A psicanálise e seu ensino”. In: Escritos, Jorge Zahar Editor, 1998.
4 . Lacan,  J. Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
5. Lacan, J. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979.
6. Maron, G. “Psicanálise e universidade: Ensinar é responder?” In: Cadernos IPUB: A Pesquisa e o Ensino da Psicanálise na Universidade, nº 9. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria-UFRJ, 2000.
7. Miller, J.-A. “Entre tradição e transmissão da psicanálise”. In: Silet. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.
8. Miller, J.-A. “Tese sobre os Institutos.”
In:http://www.ebp.org.br/escola/institutos/institutos.html


Participantes da Pesquisa: Aparecida Yára Wandick Valione, Célia Maria Betti Siqueira, Cláudia Aldigueri Rodriguez, Eliane Chermann Kogut, Fernando Aparecido Figueira do Nascimento, Luciana Carvalho Rabelo, Márcia Aparecida Barbeito, Maria Noemi de Araújo, Mariana Bacigalupo Martins, Paula Christina Verlangieri Caio .
Seção Clínica, Curso de Psicanálise e Núcleos de Pesquisas
Miller, J.-A. “Entre tradição e transmissão da psicanálise”. In: Silet. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.
Ibid,
Lacan, J. “Alocução sobre o ensino”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
Lacan, J. “Alocução sobre o ensino”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003,pg.310
Maron, G. “Psicanálise e universidade: Ensinar é responder?” In: Cadernos IPUB: A Pesquisa e o Ensino da Psicanálise na Universidade, nº 9. Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria-UFRJ, 2000.
Lacan,  J. Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.