Claudia Figaro-Garcia*
Foram realizadas poucas entrevistas com uma mulher cuja histeria estava mantendo-a em um relacionamento conjugal permeado de violência física e verbal. A violência conjugal, seu parceiro sintoma, mostrava uma repetição que permitia se fazer reconhecer pelo Outro, fazer laço social por meio dos sintomas de sofrer a violência e ser violenta com o outro. Procurou a análise por “não conseguir mais dar conta” por ser “explosiva e muito violenta”, pois perdia o “controle” e ia “para o confronto” com seu parceiro. Dizia que ele a “provocava” e que algumas vezes também acabou apanhando dela. No ambiente profissional falava o que queria, sem se importar com as conseqüências. Vinha de uma família que tinha muita briga devido à violência física que pai praticava com sua mãe e, mesmo tendo irmãos homens, era ela quem procurava defendê-la indo para cima de seu pai.
A fantasia de ser como o pai parecia aterrorizá-la. Todavia, não queria ser vista como a boazinha uma vez que dizia gostar de falar o que pensava e que não queria abrir mão disso. A repetição da cena deir para cima do pai representava para a analista o significanteconfronto. Confronto com o que? Talvez com o pai gozador e sem limites, com aquele que tinha um lugar que estava muito bem delimitado pela via da violência. O pai continuava detentor do falo, uma vez que, era para ele que o desejo masoquista de sua mãe se direcionava. Parecia que ser como o pai exercia naquela mulher um fascínio/repulsa naquela uma vez que assim sentia-se detentora de um falo violento e poderoso, capaz de se fazer reconhecida no laço social seja pelo significante explosiva ou por ser aquela que fala o que quer, sem medida. Ir para o confronto também incluía qualquer relação social onde se sentisse desafiada ou provocada.
Todavia, havia outro confronto que parecia dirigido à sua feminilidade. Confrontar o pai ou o companheiro parecia um movimento que ela fazia no sentido de compreender o que é uma mulher, o grande enigma da histérica. No modelo feminino, pela via materna, ser uma mulher parecia reduzido ao apanhar e gozar. Mas seria essa a única maneira de ter um homem? Ou ser uma mulher seria apelar para a força, gozar de outra forma que não pela submissão ao gozo masculino e sim pela identificação a ele? André (1987, p.88) diz que o insuportável para a histérica é a posição passiva, “a posição de objeto entregue ao gozo do Outro”. Essa entrega é constitutiva do infans que se assujeita ao desejo do Outro materno e que durante toda a sua vida vai continuar desejando, isto é, ser objeto causa de desejo do Outro.
O ir ao confronto parecia a forma encontrada para manter um relacionamento amoroso. O que ela parecia endereçar ao companheiro? Como histérica, sua expectativa é que o Outro fornecesse o falo que ela não possui. O problema é que o Outro também é destituído desse falo como apontou Lacan (1957-1958/1998). No Édipo feminino freudiano a menina se ressente com sua mãe por essa não ter lhe dado o falo e de ser a única mulher a possuí-lo. A compensação vem na forma de um filho, o falo que vai ganhar de seu pai. Dora, assim como as outras histéricas de Freud tinha um pai impotente, um pai que falhava. Assim, aquele falo identificado como pertencente ao pai é insuficiente, diz André (1992), ou seja, “a insígnia paterna só indica o falo, só sugere identificação fálica” não lhe possibilita dar apoio à sua identidade feminina. O que lhe resta é ser fálica sem ter o falo. Esse será demandado eternamente ao Outro.
Naquela mulher, gozar por meio da violência parecia uma forma de expressar sua feminilidade. Talvez precisasse de um homem que a provocasse e suportasse sua violência em um jogo sexual extremamente excitante. A repulsa pela idéia de ser boazinha talvez viesse pelo fato de acreditar que a violência tivesse mais brilho fálico que a bondade. Quando Miller (2000) se pergunta se o sintoma é uma lei particular de cada sujeito aponta aí a importância das condições para que ele se manifeste.Se essas condições são da ordem do real, existe um saber que não se inscreve nele, não há saber no real sobre a sexualidade humana. Esse saber é o aforisma da não-relação sexual. No entanto, sabemos que o sujeito não consegue infringir a lei que rege seu sintoma, pois dele não abre mão e tampouco do gozo que o acompanha.
Assim, o que podemos pensar dos casos de violência doméstica? É indiscutível o profundo ataque ao real do corpo que ela provoca, que se dá pelo toque físico violento, pelo olhar ameaçador ou abusivo, pela fala que humilha e desqualifica o sujeito e por seu assujeitamento ao gozo sádico do outro. Ferenczi, em 1933, descreveu a confusão que o adulto, pai incestuoso ou pedófilo, faz com a linguagem da ternura emitida pelas mensagens que a criança lhe endereça e que são compreendidas como linguagem da paixão, sendo essa a “confusão de línguas” presente nos os casos de abusos sexuais infantis.
Mas a violência doméstica não atinge apenas aquele que a sofre diretamente no corpo. Atinge o restante da família, que testemunha a sua repetição no cotidiano capaz de provocar uma confusão de identidade, nas relações entre o Eu Ideal e ao Ideal do Eu. O que é ser homem ou mulher tendo modelos familiares dessa ordem? O que pode excitar ou provocar repulsa na violência doméstica? Sabemos que a escolha de um parceiro e a manutenção de uma relação amorosa não ocorre ao acaso. Miller diz que a relação com o Outro é mediada pelo sintoma, “eis porque Lacan pôde definir o amor como o encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo o que nele e em cada um marca o rastro de seu exílio da relação sexual” (Miller, 2000, p.156). Todavia, Miller diz que o parceiro do sujeito não é o Outro, nem como outro semelhante e nem como lugar da verdade, mas parceiro do sujeito é sua própria imagem, seu objeto a, seu mais-de-gozar e seu sintoma.
Na violência doméstica o gozo está presente no sofrer, no praticar a violência e também em testemunhá-la. Uma adolescente abusada pelo pai, relatou que os irmãos costumavam colocar uma cadeira na porta para que ele fizesse barulho quando chegasse tarde em casa e acordasse o pai. Os irmãos sabiam as conseqüências que ela iria sofrer. Assim, o modo de gozo na violência doméstica parece incessantemente re-atualizado nas parcerias do núcleo familiar. É familiar no sentido do conhecido, de algo que se repete e também familiar no sentido do grupo, onde todos parecem gozar com a violência, cada um manifestando sintomas diferentes. Muitas vezes a violência é difícil de ser denunciada porque os envolvidos não abrem mão desse modo de gozo.
O desafio que aquela mulher apontava para uma possível análise foi o fato dela não querer abrir mão de seu sintoma, não queria ser “boazinha” apesar do sofrimento que dizia sentir A proposta de um trabalho analítico seria a de que ela pudesse inventar algo diferente com seu sintoma, não eliminando simplesmente a violência e sim como ela poderia fazer diferente. A significação fálica dessa mulher poderia estar em algo que ela criasse que ela valorizasse sem o uso sistemático da violência para se fazer reconhecida e valorizada. Ela acreditava que talvez seu valor estivesse no “ir para o confronto”. E talvez o único confronto que ela temesse era com relação à sua falta-a-ser.
* Aluna do Curso de Psicanálise da CLIPP (25/02/2010)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
André, S. (1992). O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Zahar.
Ferenczi, S.(1992). Confusão de línguas. In S. Ferenczi. Psicanálise IV (pp.97-106). São Paulo:Marins Fontes. (Texto original publicado em 1933)
Lacan, J. (1998). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-1958)
Miller, J.A. (2000). Os circuitos do desejo na vida e na análise. Escola Brasileira de Psicanálise. Rio de Janeiro: Contracapa.