Emanuelle Garmes Pires (CLIPP)
“Um fenômeno central do delírio de Schreber, pode-se mesmo dizer inicial na concepção que ele constrói para si dessa transformação do mundo que se constitui o seu delírio, é o que ele chama Seelenmord, o assassinato d´alma. Ora, ele mesmo o apresenta como totalmente enigmático. (Lacan, J. O Seminário – Livro III As Psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., p. 91)
O termo “assassinato d’alma” (Seelenmord), introduzido pelo juiz Daniel Paul Schreber, em seu Memórias de um Doente dos Nervos, refere-se a uma experiência enigmática e profundamente perturbadora que ocorreu no âmago de sua psicose.
Ao se aprofundar nesse conceito, Lacan interessantemente apontou como a censura do terceiro capítulo do livro de Schreber – que continha informações relevantes sobre sua família e que poderiam nos dar luz sobre seu delírio inaugural – não representariam um empecilho para a análise de sua condição (idem, p 91). Em vez disso, ressaltou que, a falta desses detalhes familiares, nos permitiria focar nos aspectos formais fundamentais do delírio.
Para Lacan, o assassinato d’alma revela para além de um passar “a alma de outro para o poder de alguém …” (idem, p. 55).
Claro que a interpretação fenomenológica de invasão, destruição da identidade e sua consequente saída pela proliferação imaginária interessa. No entanto, o assassinato d’alma traria consigo o testemunho de uma íntima modificação no campo simbólico experimentado na psicose, em que o sujeito não reconhece suas próprias produções como suas, numa demonstração de que a ordem simbólica subsiste fora do sujeito, distinta de sua existência.
A Schreber, destacou Lacan, era possível distinguir a alma de tudo o que se liga a ela (idem, p.92). Esse seria pois, o ponto essencial, sendo menos importante o delírio em suas significações. Logo, o testemunho de Schreber revela experiência mesma da perturbação profunda e inexplicável de desconexão simbólica, preliminar a todo sentido possível, o que não lhe impossibilitou de efetuar uma reconstrução de mundo, ao produzir sentido por uma outra via fora da ordem simbólica do Nome do Pai.