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Compulsões. Uma leitura. História recente.

Durval Mazzei

Caso visitassem uma enfermaria psiquiátrica ou observassem secretamente um gabinete psicanalítico, de Kraepelin ou Freud até a metade dos anos 80, o olhar revelaria uma clínica muito diferente do que é vista nessas últimas décadas. Haveria compulsão? Sim, claro. Tais manifestações estão presentes na humanidade desde os Australopitecus. Repetimos o que nos agrada, repetimos em busca de alguma satisfação mesmo que nada parecido tenha acontecido antes. Alguns levam tal repetição ao excesso. Estes recebiam a marca obsessivos compulsivos e reconhecidos como patológicos.

Havia, entretanto, uma frequência menor e uma junção com a subjetividade mais notável. E mesmo uma correlação com as manifestações clínicas clássicas. Um modo histérico de repetir, um modo obsessivo de repetir, a ponto do termo compulsão fazer parte da nomenclatura desta última condição. Um modo perverso de repetir e até um modo psicótico de repetir. Tais repetições, por vezes, tomavam ares compulsivos.

Isso que veríamos na enfermaria de Kraepelin, de Clerambault. No gabinete de Freud e de Abraham.

No entanto, de repente, a clínica diferenciou-se. Toxicômanos que não alcoolistas e a fissura inabalável; anoréticos e bulímicos aprisionados na repulsa e nos vômitos; jogadores e ninfas e sátiros em sua compulsão irreprimível; jogadores crentes que no próximo giro da roleta ganham; compradores amantes de cartões de crédito e cheques especiais para não falar dos cortes feitos no corpo para arrematar a angústia – explicação mais esdrúxula é rara. A intenção nosológica dos psiquiatras não deixou de perceber a presença destas manifestações e tomando essas partes como o todo, afastando-se de qualquer proposição estrutural, recortaram a clínica obedecendo esse modo literal de expressão e surgiram as compulsões descoladas do par obsessão. A introdução do DSM-III em 1980 declarou esse modo de recortar a clínica o modo científico de pensar, abandonando a clássica leitura psiquiátrica que visava a integração destas manifestações clínicas em construções diagnósticas mais plurais como queria Jaspers (1911/SD) na Psicopatologia Geral. Nada de universalizar apressadamente, mas perguntar se a recusa de alimento inscrevia-se em um processo, uma reação ou um desenvolvimento. Se o sexo três vezes ao dia obedecia alguma subjetivação ou simplesmente seria explicado por uma lesão biológica demonstrável ou não.

A clínica psicanalítica não ficou incólume. Os gabinetes passaram a receber tais manifestações clínicas onde a subjetividade, a significação, o sentido pareciam tão somente deixar de existir. Um psicanalista norte-americano, Glenn Gabbard (2016), chegou a publicar um tratado chamado “Psiquiatria Psicodinâmica” que visava uma coalizão da leitura psicanalítica norte-americana com o DSM.

Tal comentário não permite determinar o que veio antes. Aliás, nem sempre o historicismo permite verdadeiramente definir qual o passo que veio adiante ou por detrás. Isto é, se a aposta psiquiátrica no recorte da clínica constituiu a audiência ou se algo incipiente na cultura definiu o pensamento médico e as novas manifestações clínicas concomitantemente. Mesmo porquê é muito difícil definir uma episteme, uma trama de crenças, estando envolto nela. O Outro não se faz tão translúcido.

Mas chega a parecer que esta figura caracteriza o sujeito contemporâneo, obediente a um imperativo cego e irreprimível.

Uma vinheta clínica.

Há muitos anos chegou ao consultório do analista um jovem rapaz. À época, contava 19 anos e vinha de uma internação psiquiátrica. Havia sido internado por apresentar condutas auto-agressivas (não se cortava, mas esmurrava-se com violência), recusar sair do quarto, ameaçar desaparecer, agressão verbal aos familiares além de um fenômeno eidético quando descrevia imaginar um pênis desincorporado em direção aos orifícios erógenos do corpo. Este último detalhe, ao qual faltava as marcas próprias a fenômenos alucinatórios psicóticos, foi o princípio do trabalho. Seguiu-se à insistência deste fenômeno a revelação de um grupo de representações – que funcionavam como significantes – no qual era invadido pela ideia de que seria preso por um crime qualquer e, na prisão, não teria como evitar ser deflorado. Ele, jovem, seria certamente objeto da cobiça sexual de presos perigosos e, caso, o pai interviesse, este seria objeto do mesmo destino sexual. Tal constelação representacional o invadia cotidianamente e o resto das manifestações clínicas eram tentativas fracassadas de evitar o pensamento. O pensamento exibia, portanto, traço obsedante e repetitivo e o comportamento traço compulsivo. E, notavelmente, o pai imaginário, mesmo pouco protetor, fazia parte da construção do sintoma.

Foi muito difícil para o analisante reconhecer que o grupo de representações revelava uma tendência homossexual marcante e recusada com todo o vigor e, como o Freud ensina, retornava no sintoma que guardava o poder de mensagem e a vivência corporal revelava a satisfação incluída na manifestação, além da ambiguidade que reunia repulsa e atração. Havia, portanto, singularidade e alguma profundidade no sofrimento deste sujeito. O objeto causa de desejo não havia ascendido aos céus e o pai presente, mesmo desprovido de poder protetor. O desejo não se oferecia à satisfação direta e clara, intermediado por um ato – um crime – a léguas de passar à ação. Obedecia, sim, a um mandato cego e irreprimível, mas inconsciente contra o qual levantava a parca força recalcadora. Vivia desesperadamente uma situação conflitiva. Levantava um “não” no espaço psíquico próprio, sem a ingenuidade de uma aposta na interiorização como o alfa e o ômega da verdade.

Estava, portanto, um tanto distante de obedecer comportadamente à característica mais clara e radical da pulsão: a repetição descabeçada e impossível de ser refreada e distante de qualquer traço conflitivo pois a pulsão é ela mesma automatismo de repetição que supõe uma satisfação inalcançável. É deste modo que a pulsão age seja ela um efeito do corpo que o significante, a representação, procura dar um destino, como queria Freud; seja ela o produto do trauma da língua ou da alienação significante, como formula Lacan.

Ora: não parece o que é observado nessas manifestações contemporâneas. Não são atos similares ao que ocorre na neurose obsessivo-compulsiva. Quando um comprador compulsivo fala de um conflito é a conta bancária que expirou, é o cartão sem crédito, é o empréstimo recusado, a ameaça do agiota ou a desconfiança do familiar. Desencadear o ato de comprar, de trepar, de comer, de cheirar, de jogar não traz nada similar a um dilema pessoal, mas a sanções do outro imaginário que impediriam a fruição da ação. Possível supor que a repetição do ato obedece à tirania do objeto. O objeto foi elevado aos céus e o Outro não entra na conta. Esse novo compulsivo está bem próximo do estilo próprio da pulsão.

Como pensar essa novidade?

Tomo duas passagens de Lacan. A primeira: “que antes renuncie a isso [a função do analista], portanto, quem não conseguiu alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época (Lacan, 1953-1988, 322)”. A segunda: “o Complexo de Édipo… que define mais particularmente as relações psíquicas na família humana… A ordem metódica aqui proposta, na consideração tanto das estruturas mentais quanto das realidades sociais, conduzirá a uma revisão do complexo que permitirá situar na história a família patriarcal e esclarecer melhor a neurose contemporânea (Lacan, 1938-2003, 51/2)”.

O sentido destas duas citações, antigas, longe do segundo ensino, é apontar que a subjetividade não se mantém a mesma eternamente e que a referência freudiana que sustentou o discurso analítico sobre a neurose pode não ser mais tão efetiva. Não por mostrar-se uma falsidade, mas pelo mundo continuar rolando sobre si. A família mudou, o cotidiano mudou invadido tanto pela infinidade de gadgets quanto pela penetração da intervenção científica, os ideais espalharam-se em tribos e perderam o senso de perenidade, a centralidade paterna escorregou para o canto da família. O equívoco, certamente, não é do mundo mas daqueles que apostam tão somente na tradição. Como escreve Miller (2004), são analistas “cujo objetivo será o de reconstituir o inconsciente de papai [ou tomam uma posição]… passadista. Ela consiste em dizer: nada acontece, nada se passou, o inconsciente é eterno (6)”

Aposta manca, claramente em sociedades e culturas abertas como a civilização ocidental se fez notável.

Deste modo, não é possível apontar um único ponto que perturbou os movimentos de rotação e translação do mundo e nem que tal perturbação seja uniforme. Não é uniforme. Há uma clara, como dito, tribalização no jogo contemporâneo da cultura ocidental. O ateísmo é inexistente entre cristãos fundamentalistas e os pastores não passam de charlatões entre os seculares. Boa parte das nações islâmicas mantém o mesmo formato desde que o Alcorão, a “leitura por excelência”, foi ditado por Maomé há 1370 anos. Enfim, não há um recorte essencial que capture fenômenos complexos, mas salta aos olhos que a cultura evidencia transformações evidentes.

E não é a primeira vez que transformações notáveis se dão na marcha sensata ou não da humanidade.

Assim, não é absurdo afirmar que o imperativo categórico kantiano, exposto na Fundamentação Metafísica dos Costumes (1785-2019), foi a primeira afirmação de que o Outro, Deus, não existe, iniciando a queda da ordenação cristã do ocidente. “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal. Age de tal forma que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo, como fim e nunca como meio. Age de tal maneira que a tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo como um legislador universal através de máximas”. Um modo de ler essas frases é sacar que não há referência a Deus como garantia da verdade, como operador da motivação humana e para a compreensão e regulação ética entre os seres. Mas: constituiu uma bússola que tirou a bola da mão da divindade. A bola está nos meus e nos seus pés.

Obviamente, as igrejas e templos não se esvaziaram à proclamação kantiana. Nem mesmo, quando na mesma esteira laica e iluminista, Nietzsche proferiu “Deus está morto!”. Frase que significa que os ensinamentos do mestre, o cristianismo, foram gradativamente substituídos pelo saber construído através do discurso científico. As leis da natureza passaram a ser objeto do escrutínio dos irmãos e não mais propriedade obscura do pai, de acordo com o projeto escrito por Bacon no Novum Organum (1620-1979) (século XVII) e por Pico Della Mirandola no Discurso sobre a Dignidade do Homem (1486-2006) (século XV), apresentados séculos antes. Diga-se que tanto Bacon quanto Mirandola fundamentavam-se na máxima cristã que o planeta foi feito para o desfrute daquele construído a sua imagem e semelhança. Modo de recortar a natureza que pode esclarecer a destruição desta, efeitos que temos vivido de maneira radical hoje em dia. Mas, o ponto é que a liberdade de interferir na obra divina indica uma transformação na subjetividade nem um pouco negligenciável

Enfim, não é a primeira vez que a subjetividade passa por transformações. Não é impossível afirmar que o abandono do poder sobrenatural, da intervenção cotidiana da divindade e a inauguração de um mundo desencantado representou uma transformação de amplitude incomensurável tal e qual a contemporânea. E, como escrito acima, não é esperança que o historicismo indique marcos que se generalizem de tal modo que seja possível enxergar a borda do branco e do negro.

Mas, é no acinzentado da marcha da cultura que garimpa-se a subjetividade contemporânea.

Miller (2004, op cit) faz comentários interessantes a esse respeito. Ao apontar que os sujeitos contemporâneos, pós ou hipermodernos, são desinibidos, desamparados e desbussolados. Isto é, caminham com referências distintas do homem moderno, iluminista e acossado pela moral civilizada e não deixa de falar da responsabilidade do discurso analítico nesta transformação. Ora, o discurso analítico colaborou para a mudança da moral civilizada. Sem obstar, Miller coloca o discurso analítico como consequente a um movimento mais amplo: o deslocamento da agricultura do primeiro plano da atividade humana, ocupado pela atividade industrial. Ora: a agricultura é plenamente “bussolada” e depende do que transcende a ação humana: o clima, a natureza e o ciclo das estações. É claro que o engenho humano fez, e faz, muito para escapar a tal submissão mas, mesmo reconhecendo a magnitude da intervenção humana na natureza, não há comparação com o isolamento dos humores da natureza que a tarefa industrial permite. Chova, caia a neve ou faça sol, a máquina gira.

Esse é um modo de mapear a subjetividade humana contemporânea. Uma transformação construída em séculos que resultou no obscurecimento de uma lei para todos ditada pela divindade. Não se trata, portanto, de uma novidade que se fez da noite para o dia, mas de uma construção erigida passo a passo e sem nenhuma teleologia. Não há uma causa final a apontar para onde caminha a humanidade.

Supõe-se que esta marcha traga novidades para onde Freud apontou a investigação: a família nuclear que substituiu a coletividade na constituição do sujeito. Freud nomeou complexo de Édipo, centrado na castração e na função paterna, a este trabalho de construção. A consequência mais evidente do jogo edípico é o nexo entre o sujeito e o objeto privilegiado causa de desejo. Este está perdido. Desde a experiência alucinatória primária à mãe que não reintegrará seu produto há um obstáculo entre o sujeito e o objeto que está expresso na fórmula, matema, da fantasia: $  a. Matema que se lê: o sujeito barrado, isto é, não uno, na relação de proximidade e afastamento com o objeto causa de desejo. Há, portanto, um furo, um não preenchimento, uma impossibilidade de obturação entre o sujeito e o objeto. O que garante o desejo.

Isso define uma subjetividade. Resta saber se a marcha contemporânea trouxe uma novidade a este estado de coisas, fazendo com que os seres pós ou hipermodernos, desinibidos e desbussolados, estão marcados por uma promessa que este furo seja apenas o efeito de uma narrativa e não de uma condição, a discutida condição humana. Isto é, no lugar de marcas que indicam ausência de X, um termo qualquer, pelo efeito da privação, da frustração e da castração, índices do ‘nem tudo é permitido’, operadas pela função paterna, surge ou sobrepõe-se uma marca positiva: “eu posso!”, “quem disse que não pode?”. Uma nova posição que aposta que o impossível é subproduto de gestão mal feita da existência. Resulta na positivação do gozo e, portanto, uma mudança no centro de gravidade da privação e da castração, guardando a possibilidade dos efeitos resultarem distintos em cada uma delas. Assim, restam tão somente os frustrados, acossados pelo dano imaginário que a ausência do objeto real produz e empurram-se à repetição, pois isto tornou-se intolerável, pois os objetos estão aí a fascinar e capturar o falasser em sua direção. Se esta hipótese é viável, nada mais próximo à exigência cega e irreprimível da pulsão.

Se inventarmos uma novela familiar contemporânea que sustente este estado de coisas, o holofote dirige-se à função paterna. Apesar de quando escreve-se “função” define-se um lugar vazio que pode ser preenchido por qualquer termo. Não necessariamente, um homem, genitor, que convive com uma mulher que lhe devota demandas. Sem obstar, o que a modernidade legou é a família patriarcal onde um homem está exercendo essa função. Este representa a lei, representa a posse, representa a ordem, recebe privilégio: aquela mulher é dele. A soma destes fatores indica um lugar de exceção. A função paterna, mesmo que possa ser preenchida por qualquer termo, é herdeira deste senso de ordem, de ideal, de lugar a alcançar.

Ora: os ideais caíram, as soluções são particulares, os traços que sustentam identificações multiplicaram-se de forma tal que, mesmo que ocorra algum impedimento, este pode ser superado. Não há mais lei, mas norma; não há mais verdade como resultado de revelação, mas apenas a adequação à coisa; não há mais impossibilidade, mas insistência; não há mais objeto metonímico, mas objeto possível. O gozo positivado obscurece o desejo e a propriedade deste de estar um passo à frente. Assim, o pai ou o termo que faz as vezes da função, deixa de ser exceção: todos são exceções. Todos podem.

Constitui-se deste modo o avesso ao mal-estar na civilização estruturante. O homem pode apostar que a cultura aí está para garantir a totalidade e não indicar que a fundação da cultura foi resultado do assassinato e da ingestão daquele que tudo podia e instaurar não um conjunto de regras, mas uma lei fundada na exogamia que excluía objetos do acesso à satisfação. Mais que isso, via ciência intervencionista de ponta, excluir o acaso. Lee Silver (2001) fala em mudar a natureza da humanidade, Changeux (2001) em extirpar a ansiedade, Peter Singer (2005) entusiasma-se com o supermercado genético acabando com o jogo de dados dos genes. Isto é, a privação operada pelo real que tem como agente um termo imaginário (mais comumente, o pai imaginário) e correlacionada com o objeto simbólico ausenta-se, seja ele o Falo ou o Ideal do Eu. Modo de dizer que a privação, mais que a castração, é perturbada pela marcha da cultura.

Ora: tal ausência muda a relação do sujeito com o objeto. Este perde a marca que Lacan (1992–1969/70) esclareceu: “o que é preciso dizer é que tal objeto não é nomeável. Se tento nomeá-lo como mais-de-gozar, isto é apenas aparato de nomenclatura… Sobre esse objeto nada sabemos, salvo que é causa de desejo, quer dizer,… é como falta a ser que ele se manifesta (143/4)”. E, mais que isso, além do falo, do seio, do cíbalo, da voz e do olhar, mas sustentando-se nestes objetos que revelam a virtualidade permanentemente aberta, a falta a ser, “o mais-de-gozar que o escravo nos dá está ao alcance da mão (Lacan, 167)”. São as latusas, condensadores de gozo “que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês (Lacan, 153)”.

E, tal como Lacan, seguindo Marx, é interessante sacar que esse objeto, notadamente ao tornar-se mercadoria deixa de ser algo trivial e que se compreende por si mesmo pelo reconhecimento do valor de uso. “Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito complexa, cheia de sutilezas metafísicas e argúcias teológicas (Marx-1867, 29)”. Assim, quando ao valor de uso agrega-se o valor de troca, aquela coisinha perde o traço trivial e assume o caráter fetichista, isto é, entra no jogo da satisfação, da repetição, do erotismo, do gozo e do desejo.

É esta coalizão da ciência com a produção que favorece a miríade de latusas, o mais-de-gozar que o escravo deixa ao alcance da mão, que, desde a época de Lacan, não parou de crescer e permitiu uma invenção no esquema de relações estáveis que se fixa na linguagem, os discursos, e cristaliza-se de tal forma que o laço social funcione. Lacan definiu quatro discursos: Mestre, Analítico, Universitário e Histérico. Estruturou-os sobre quatro lugares: agente, outro, produção e verdade onde sucedem-se em ordem S1, S2, a e $, as letrinhas. Poucos anos após, a inventividade de Lacan construiu nova invenção. Esta foi expressa dois anos após a exposição do Seminário XVII na conferência de 1972 em Milão, denominada “Do Discurso Analítico”. A  novidade consistiu em “uma pequenininha inversão simplesmente entre S1 e $ (8)”. Esta ‘pequenininha’ invenção, entretanto, resultou no apagamento da impossibilidade e do obstáculo à circulação livre das letras e das relações intrínsecas entre elas e os lugares resultando em “[algo que] ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome, se consome tão bem que se consuma (8)”. Este é o discurso capitalista, o mestre contemporâneo. Como revelado abaixo, a consequência fundamental é a subversão do matema da fantasia. De $  a para a  $. Se a fantasia revelava o laço de proximidade e afastamento entre $ e objeto, a subversão desta é referida como o predomínio do objeto sobre o sujeito, comandando descaradamente o ato na existência. É a referência de Miller à elevação do objeto ao zênite, como Lacan expressou em Radiofonia. O objeto, então, parece estar ao alcance da mão. Parece possível como se a privação e a castração desaparecessem da saga do sujeito e resta-se apenas a frustração e esta aponta um sujeito menor, um sujeito envolto na incapacidade, envolto na inveja kleiniana e repetidamente atrás do objeto que o completa que o absolutiza.

Os quatro discursos e o discurso do capitalista.

Como se vê, desde a escritura dos quadrípodes dos discursos, o único que permite a ligação direta do objeto com o sujeito é o discurso capitalista. Deduz-se que tal situação favorece a imaginarização do objeto que perde a qualidade simbólica, isto é a substituição e a contiguidade, restando o caráter de objeto real acessível e existente que responde menos ao desejo e mais ao gozo emulando a marca da pulsão. Esta é a proposição que está à prova. A subjetividade contemporânea onde o analista, se desejar continuar no lugar, deve reconhecer e trabalhar com ou contra ela abre a perspectiva de produzir um sujeito que não se considera privado pois não há mais ideal que se apresente como “isto é para todos” dado que a centralidade imaginária do pai deslocou-se.

E o ato analítico tem que se haver com esta novidade não freudiana de uma manifestação que não se coloca como dirigida ao Outro.

Laurent.

O convite que recebi contemplava uma sugestão de texto: “A sociedade do sintoma” escrito por Eric Laurent e publicado no livro “A Sociedade do Sintoma. A Psicanálise hoje (2007)”. Como perceberam, não fiz referência a esta recomendação. Não significa que não li, mas como o espírito manda, arrisquei escrever algo de punho próprio e depois cotejar com o texto de Laurent, antecipando um princípio: não escreveremos textos amplamente divergentes, guardando a possibilidade triste do texto dele ser muito melhor que o meu. Azar de vocês que me ouviram ao invés de ouvi-lo.

Vamos ver se tenho razão. Isto é, que o texto dele é melhor mas não amplamente divergente.

O primeiro e o segundo parágrafos são convergentes. Laurent cita Miller e o acompanha quando diz que a conjuntura atual “é dominada pelo objeto a: a  I (163)”. A escritura é distinta da que escolhi, a  $, derivada do discurso capitalista, mas significa a mesma preocupação e o matema do Miller aponta o que explicitei no texto sobre a imaginarização do objeto que marca sua ascensão ao zênite, pois pode ser lido objeto maior que a identificação.

O terceiro parágrafo também converge: a referência ao discurso capitalista como mestre contemporâneo e a referência marxista sobre a diferença entre o objeto como valor de uso e caráter fetichista do mesmo objeto ao agregar o valor de troca.

Do quarto ao nono parágrafo, apesar das referências mais próximas que as minhas (Heidegger, Merleau-Ponty, a segunda guerra mundial, Freud, Milner e Lacan), toca no ponto das influências da subjetividade da época e o provável, talvez inevitável, efeito no sujeito. As referências a Lacan tocam em pontos similares: a estigmatização do mercado comum e “o questionamento de todas as estruturas sociais pelo progresso da ciência”.

O item “O caos identificatório e a overdose”, felizmente, outra convergência surge. Ao citar Miller que atribui à cultura a marca “fragmentada, dispersa, não totalizável (167)” sustentando-se no não-todo de Lacan e na multiplicidade inconsistente de Cantor e que “os mercados procuram um significante-mestre e não encontram (168)” ecoa no meu texto como tribalização e termina o capítulo falando da overdose. Entre as compulsões, cita a toxicomania. E comenta sobre as ações excessivas: trabalho, comportamento suicida, suicídio político como revelação de que o Outro abandonou a humanidade à fragmentação. Continuamos no mesmo campo.

No item “Crepúsculo e aurora”, centrado em citações de Lipovetsky, Laurent comenta dois pontos: a aurora do sintoma que, diretamente não comentei, mas é dedução de um elemento identificatório que a série de compulsões define uma série de identificações: sou toxicômano, anorético, bulímico e etc., presença de uma certeza que torna o ato analítico delicado: não há Sujeito suposto Saber. Há saber. O outro ponto importante é o nexo entre a queda dos ideais e a exigência do gozo, fulcro da proposição aqui apresentada.

No último item de seu escrito “Serenidade e sintoma” , Laurent dirige a atenção à posição do analista diante de um “sujeito que já está aliviado (171)”, o que não contemplei no texto. Ele escreve “o psicanalista deve permanecer atópico em relação à corrente principal da civilização que o arrasta (171)” de tal forma que nem se maravilha com as novidades, não obedece ao Goza!, nem se torna um censor. E continua atento à particularidade daquele que maciçamente identificado a uma representação universal que o estereotipa. E, pela via do sintoma, demonstrar a existência do inconsciente e “transmitir o encontro com esse real demonstrado pela contingência irredutível dos traumas e dos encontros de gozo é o que Lacan chamou de fazer o sujeito crer em seu sintoma… o insuportável do sintoma pode se transformar em ponto de apoio para que o sujeito reencontre seu lugar no Outro (175)”. E conclui que “o programa de ação do psicanalista pode ser nomeado com a fórmula: fazer acreditar no sintoma. Encontrar a forma de endereçar-se à angústia do sujeito é fazê-lo entender que os sintomas inéditos da nossa civilização são legíveis (176)”.

O trabalho do analista, deste modo, aumenta, mas, sustentado na ética, pode sim permanecer dirigindo-se à sociedade do sintoma.

 


Bibliografia:
Bacon, F (1620-1979) Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Os Pensadores. Abril Cultural, São Paulo.
Changeux, J-P; Ricoeur, P (2001) La naturaliza y la norma. Lo que nos hace pensar. Fondo de Cultura Económica, México.
Gabbard, G O (2016) Psiquiatria Psicodinâmica na prática clínica. ArtMed, Porto Alegre.
Jaspers, K (1911-SD) Psicopatologia Geral. Psicologia compreensiva, explicativa e Fenomenologia, volume 2. Atheneu, Rio de Janeiro.
Kant, I (1785-2019) A fundamentação da Metafísica dos Costumes. Edições 70, Lisboa.
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Lacan, J (1938-2003) Os complexos familiares na formação do indivíduo. Em Outros Escritos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.
Lacan,  J (1992–1969/70) O Seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.
Lacan, J (1972) Do discurso psicanalítico. (https://edisciplinas.usp.br) Acesso 10/03/2022.
Laurent, É (2007) A sociedade do sintoma. Em A sociedade do sintoma. A psicanálise, hoje. Contra Capa Livraria, Rio de Janeiro.
Marx, K (1867) O capital, volume 1. (https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital) Acesso 11/03/2022.
Miller, J-A (2004) Uma fantasia (conferência: IV Congresso-AMP – Comandatuba) (http://2012.congressoamp.com) Acesso 25/02/2023.
Mirandola, P D (1486-2006) Discurso sobre a dignidade do homem. Edições 70, Lisboa.
Silver, L M (2001) De volta ao Éden. Engenharia genética, clonagem e o futuro das famílias. Mercuryo, São Paulo.
Singer, P (2005) De compras en el supermercado genético. Em F. Luna & E. R. López (orgs), Los desafios éticos de la genética humana. Universidad Nacional Autónoma de México/ Fondo de Cultura Económica.