Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri – 6/11/2023
Célia Cândida Borges Chamorro se propôs a fazer Pontuações sobre o Conceito de Transferência em Freud e Lacan, como trabalho de conclusão do Curso de Psicanálise da Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisa em Psicanálise – CLIPP.
Célia me procurou para orientação, colocando de início seu desejo em pesquisar o conceito de transferência em Freud e em Lacan. Sua opção por Freud foi dirigida basicamente aos textos: A Dinâmica da transferência (1912), Recordar repetir elaborar (1914), Além do principio do prazer (1920). A opção por estudar Lacan foi dirigida aos textos: Seminário VIII – A Transferência (1961) e Seminário XI – Os quatro Conceitos Fundamentais (1964). Outros textos também entram na dissertação, em apoio às suas pontuações.
Como chave de leitura para a obra destes autores, Célia fez uso em especial do texto de Jacques-Alain Miller, A psicanálise de Freud a Lacan (1988), texto contido no livro “O Percurso de Lacan – uma introdução”.
Considerando ser a transferência na experiência analítica, o grande desafio a enfrentar na prática clínica, Célia a examina em sua especificidade, pois a mesma pode servir tanto enquanto motor, quanto como obstáculo ao tratamento, como bem observa Freud que, “a mais forte alavanca do sucesso tornar-se o mais poderoso meio de resistência”. (Freud, A Dinâmica da Transferência, Vol 10, Cia das Letras, p. 137).
Estudando os Seminários VIII (1961) e XI (1964), Célia deparou-se com as articulações e elaborações de Lacan, que contribuem para a compreensão deste tema fundamental. Partindo do conceito em Freud, Lacan vai até a concepção do “Sujeito suposto Saber”, termo que designa o lugar simbólico do analista na experiência.
A proposta de trabalho da monografia em pauta, apresentou duas vias de pesquisa: primeiro os pontos mais relevantes sobre transferência em Freud, escritos após o caso Dora (1905) (o que enfatiza a questão clínica preponderando e se antecipando à teoria), além de recortes do texto Para Além do princípio do prazer (1920). A segunda via de pesquisa, levando em conta as considerações de Lacan sobre o tema, Célia aponta para o fato de que este autor toma como gancho uma releitura de Freud para ao mesmo tempo, introduzir novos termos: o grande outro (A), o “Sujeito suposto saber”.
Chama a atenção o porquê de sua escolha por este tema. Durante os três anos do curso de psicanálíse na Clipp, ela relata haver percebido que, a apreesão dos conceitos freudianos e lacanianos eram (e continuam sendo para ela) um grande desafio, necessitando empenho nas leituras, aulas, seminários, análise pessoal, supervisões e prática clinica.
Entendendo que, de Freud a Lacan, a formação do analista implica necessariamente teoria e prática além de análise pessoal, tornando mais evidente a questão da transferência. Tanto para Freud quanto para Lacan este conceito fundamental implica tanto a sua compreensão, quanto o seu manejo no exercício da prática clínica.
Para Lacan, sustentar uma determinada noção de transferência já implica o modo de manejá-la e revela um posicionamento do analista frente à prática da psicanálise. (Ver Lacan, A Direção do Tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos, p. 609).
Diante de conceitos que abarcam teorias complexas sobre o psiquismo humano e ciente da necessidade da formação constante exigida para quem pretende ser analista, Célia se deu conta de que o conceito de transferência, em especial, exige aprofundamento e pesquisa, pois, diante deste fenômeno, tido como inerente e fundamental à prática analítica tanto por Freud quanto por Lacan, corre-se o risco de diferentes embaraços na condução de uma análise. A incompreensão do fenômeno afeta o manejo e compromete o processo de uma psicanálise, como o próprio Freud se deu conta, em especial na condução do Caso Dora.
Freud afirma em Observações sobre o amor de transferência (1915), que “Todo iniciante na psicanálise provavelmente se assusta com as dificuldades que lhe aparecerão ao interpretar as associações do paciente e cuidar da reprodução do recalcado. Mas logo chega o momento de ele atribuir pouco valor a estas dificuldades, e convencer-se de que as únicas realmente sérias estão no uso da transferência” (p.211).
Após a leitura da dissertação de Célia, elaboramos a hipótese de que a mesma vai em direção à questão do Saber do Analista, tema ao qual Lacan dedica um Seminário em Sainte-Anne (1971/1971), propondo que a única paixão que cabe ao analista é a paixão da ignorância; ao lado desta estão amor e ódio, que se referem ao analisante e à questão transferencial.
Dizer que cabe ao analista a paixão da ignorância, implica uma relação com o saber e, “O desejo de saber é o ponto a partir do qual se pode dizer que há analista”. (Miller, Como Terminam as Análises, p. 135). Uma análise se inicia com amor ao saber e finaliza com o desejo de saber, mas desejo de saber que carrega em seu bojo a paixão da ignorância, pois “A verdade é que não há a essência (ou tipo ideal, universal) do analista. (…) Nunca há todos os analistas, não há o analista dos analistas, há somente analista, um e um e um, cada um se autorizando de si mesmo e que fazem série, mas não universo” (Miller, Como Terminam as Análises, p. 107).
A ausência de um universal no que concerne ao analista não invalida a prática da psicanálise, “ela apenas torna radical a responsabilidade subjetiva de quem pretende exercê-la. Nada de piedade para os analistas!” (Miller, Como Terminam as Análises, p. 109).
Se não há o analista, se cada um se autoriza de si mesmo ( afirmação que deve ser muito bem balizada, afinal a que se refere Lacan quando fala de “si mesmo”?), a questão do saber se torna vital, a questão do desejo de saber.
Desejo de saber que conduz a um curso de Psicanálise que, estando no caminho certo, dirige seus esforços para que este desejo se torne sempre mais proeminente.
Não se trata do saber científico, embora para Lacan a psicanálise dependa da ciência, o que não significa que ela seja ciência. Também não se trata de saber livresco, intelectual, mas de “saber (que) não é nada senão aquele que provém da notação resultante do fato de postular a verdade a partir do significante”. (Lacan, Sem. 19 … ou pior, p. 166).
A paixão da ignorância está longe de ser um não-saber, trata-se mais de um saber inédito, saber sobre a verdade, tal como podemos vislumbrar no Discurso do Analista.
É preciso também levar em consideração que não se pode saber tudo sobre a verdade que, localizada no simbólico, é apenas semi-dita como adverte Lacan: “Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras.” (Lacan, Televisão. In: Outros Escritos, p. 508).
Pode-se dizer então, com Miller, que “O analista não é apenas o rebotalho da ciência e da douta ignorância, ele é também o rebotalho do modelo freudiano da psicanálise, que tropeça no infinito da psicanálise”. (Miller, Como Terminam as Análises, p. 155).