
Fonte: Vasily Kandinsky’s “Composition 8”, 1923.
Claudio Ivan Bezerra (CLIPP)
1. Lalangue: alíngua[1] ou lalíngua? – Uma nota de tradução
Antes de adentrar no texto quero trazer uma perspectiva do vocábulo alíngua a partir do artigo de Haroldo de Campos[2] O Afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua (1989) [3]. Como tradutor, ele discorda do neovocábulo: alíngua. Em português podemos confundir com o prefixo “a” de negação, sendo diferente no francês, em que “la” exerce função de artigo feminino. Logo, alíngua pelo entendimento morfológico poderia significar carência de língua, ou seja, o oposto de lalangue, que tem domínio onomatopaico (figura de linguagem na qual se reproduz sons por meio de fonemas e não depende da significação). Campos defende o uso de lalíngua que ressoa lalia, lalação, ou seja, uma evocação ao fluxo polifônico.
2. Comentário sobre o conceito de lalíngua em Miller[4]
Lacan[5] inventou o termo lalíngua para tornar palpável o modo como a carne é tatuada pelo verbo muito antes que se estruture gramaticalmente uma linguagem. Lalíngua é uma invenção afim a outro neologismo, “moterialismo”[6] termo usado na Conferência de Genebra sobre o sintoma (1975) – o termo condensa mot (palavra) e materialisme (materialismo). Este conceito tem efeitos práticos na clínica; exemplo é a questão da entrada em análise, em que há abertura do inconsciente e permite ao analisante localizar um sujeito em seu dizer, indicando algo da sua relação mais singular com a palavra e como esta toca seu corpo,[7] ou seja, sua lalíngua familiar.
Para Jacques-Alain Miller, organizador e elucidador do ensino de Lacan, lalíngua é um conceito que permite a virada axiomática de Lacan para além do estruturalismo. Em “Teoria de lalíngua”, Miller diz “A linguagem não é lalíngua”[8] e completa “Lalíngua, sem dúvida, não mora no lugar do Outro da linguagem. O Outro da linguagem também corre atrás de lalíngua, se exaure para alcançá-la, e o chiste “ganha de lavada”[9].
Sendo assim, lalíngua é anterior à linguagem, é uma elucubração de saber sobre a língua. E neste nível primordial há um gozo presente na lalíngua[10]. O primário é a lalíngua e o gozo, e a partir disto tudo mais é derivado[11]. Logo, o significante não está reduzido à articulação com o S2; há um estatuto do Um sozinho e o significante não se limita à sua função de representação do sujeito, o que torna problemático e misterioso o Outro. Lacan diz que o “inconsciente é o discurso do Outro”, em Subversão do sujeito e dialética do desejo no insconsciente freudiano de 1960, publicado nos Escritos.
Miller destaca o estatuto do Um sozinho, a tese do Um como o que estabelece a passagem ao último ensino de Lacan, a mudança axiomática que localiza o Um em relação com o gozo e coloca, como problemática a relação com o Outro. Como o Um pode passar ao Outro? Esta é a pergunta que Miller repetirá muitas vezes ao longo do curso Los Signos del Goce (1998).
Lalíngua não é uma estrutura, mas, enquanto sustenta o simbólico, pode escrever-se como S1,S1,S1,etc. Isto quer dizer que está feita de S1 e que não chega a S2. Bayón remeterá a pertinência do título O Nascimento do Outro, dos Lefort, na medida que partiram do Um, que corresponde a esta orientação e, portanto, o Outro se converteu em um problema para eles. Há uma estrutura quando um S2 agrega-se ao S1. Logo, temos situados dois tempos lógicos:
- Lalíngua: formado por uma série de S1s – não há um sistema (não-sistema), é a-estrutural e localiza lalíngua como um simbólico especial, que se encontra entre simbólico e real composta por Uns.
- Linguagem: formada por um sistema de oposições e hierarquias; há significantes que se opõem, se diferenciam, se combinam e estabelecem leis; metáfora e metonímia (condensação e deslocamento) que são as leis do inconsciente. Logo, “a concepção lógica da linguagem, digamos que ela tem como pivô a ideia de universo do discurso[12].
Se o inconsciente está estruturado como uma linguagem e a descoberta de lalíngua está num tempo lógico anterior a linguagem, só haveria um sujeito na articulação com o Outro?
Desde 1977, Lacan anuncia: “O inconsciente não entrega se mais como no tempo de Freud” [13] e ”Daí minha expressão falasser que virá substituir o inconsciente de Freud”[14], tratando a questão de Joyce como “o desabonado do inconsciente alguém que joga estritamente apenas com a linguagem, ainda que sirva de uma língua entre outras e que é, não a sua (…) mas aquela dos invasores e opressores”[15]. O inconsciente não é mais o “discurso do Outro”, mas “real”. Isto desloca a apreensão do aparelho inconsciente através do primado do significante “Um”: no real inscreve a letra do sinthoma, o sujeito do inconsciente torna-se “hipótese que fazemos sobre o Um com o real quando se inventa de encadeá-lo a um outro” proposto por Miller em O ser e o um (2011). O inconsciente antes decifrável torna-se um saber hipotético, uma elucubração do saber sobre lalíngua.
Miller, em El lugar y el lazo (curso publicado em 2013) propõe retomar o conceito de falasser. Substituirá a sistemática do termo sujeito pelo termo falasser. Isto o leva a dedicar todo um aparato para o autismo. O Ultimíssimo toma como ponto de partida o singular, concentra-se no que é singular de cada um. Assim há melhor esclarecimento psicanalítico sobre autismo graças à lalíngua – é um forçamento do Um, do Um do gozo.
Bayón diz que sempre podemos sonhar com o gozo do Outro, mas o gozo só pode tocar este gozo do Um e modificá-lo. O gozo do corpo próprio opaco torna-o muito mais interessante para a psicanálise, pois significa que a operação da psicanálise é um forçamento que relaciona o gozo a um sentido para resolvê-lo[16].
Retomando a questão de Miller, como passar de lalíngua à linguagem? Eis que surge como importância central a diferença que se pode estabelecer entre dois estatutos do S1: o S1 em lalíngua e o S1 como letra.
3. Uma experiência a céu aberto
Há alguns anos estava passando o final de semana num hotel à beira mar. Na área da piscina havia um homem com uma criança de aproximadamente 5 anos que chorava o tempo todo. Na conversa com outro homem, ele dizia ter passado em várias consultas médicas para identificar o problema do seu filho. A criança não falava e ficava muito agitada fora de casa, soltava gritos e choros, nada parecia agradá-la. Era como se o pai estivesse se desculpando por todo escândalo que seu filho, o pequeno E , estava fazendo. O pai dizia seguramente não se tratar de autismo. No momento seguinte ele passa com o menino perto de mim. Entra na água e tenta chamá-lo e há uma recusa acompanhada por muito choro e berro.
Eu que estou dentro da piscina passo, borborejar com a borda d’água. Isto atraí o olhar de E. Imediatamente faço um gesto para E vir no meu colo. Com o consentimento dos pais me aproximo da beirada. E aceita vir nos meus braços, e sem interromper o som das borbulhas começo a nadar com ele. Damos várias voltas pela piscina enquanto E começa a se descontrair e passa a sorrir. O pai, perplexo, comenta ao redor que foi a primeira vez que ele nadou, e que aceitou ir com uma pessoa estranha. Passados alguns minutos, eu me canso, noto que ele começa a me estranhar. Por impulso, o chamo pelo nome. Ele começa a chorar e me rejeita. Eu o devolvo a criança ao pai. E guardo por uma década a questão: Como explicar meu encontro sem sentido ?
Em Comentário sobre a terceira, Miller diz “existe algo na fala que é anterior à distinção entre o significante e significado. O ronrom é som, um ruído. Não é exatamente um significante, não é um fonema. O ronron faz vibrar o corpo … ele é seu gozo”[17].
Retomando Bayón, a lalíngua no autismo tem maior presença clínica quando não está articulada em significantes, mas mostra-se em estado puro, em sua presença sonora, através de: balbucio, jargões, ritmos sem significações, jaculações (arremessos), ecolalia (fala repetitiva), ecofrasia (repetições involuntárias), ecopraxia, imitação de sons. Não se trata da significação, mas sim da materialidade sonora – o efeito de ressonância que essas palavras produzem. E como a análise pode intervir sobre a clínica de lalíngua? Através do forçamento do gozo do Um.
A direção do tratamento do autismo deve incluir lalíngua como sua matéria (sonora), sem tentar forçar a passagem ao campo da linguagem. Isto é não supor uma significação, uma vez que a passagem da linguagem não foi realizada. No autismo não se pode calar o murmúrio de lalíngua, elemento sonoro, ensurdecedor.
Respondendo a minha questão, acredito que meu equívoco foi tentar trazê-lo ao campo da linguagem, ao tentar chamá-lo por seu nome. Haveria outro manejo?